Na alma de Waldemar Bastos há orquestras

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Waldemar Bastos não faz a coisa por menos: o concerto que dará amanhã, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a meias com a Orquestra Gulbenkian será “um momento sublime e histórico”, acima de tudo “pela convivência da música clássica ocidental da orquestra com a ancestral e contemporânea de África” representada pelas composições de Bastos.

O concerto vem na sequência de Classics of My Soul, o mais recente álbum do músico angolano, em que este, como o título do disco indica, recria canções que para si atingiram o estatuto de clássicos – uma definição muito idiossincrática do autor, que carece de uma explicação que daremos mais tarde.

No disco o compositor tem a companhia da London Symphony Orchestra, em quatro dos temas, trazendo a canções telúricas, enraizadas na tradição angolana, uma grandeza que só o próprio lhes adivinhava.

“O meu pai era organista da Sé Catedral” de São Salvador do Congo (a actual M’banza-Congo), contou-nos o autor do magnífico Renascença (2004) há dias, nos camarins de uma gala da RTP, onde horas depois iria actuar. “Talvez por isso toco guitarra de forma diferente. No meu subconsciente sempre ouvi muito o enchimento das canções. Isto deve-se a habituar-me a escutar o meu pai tocar em casa música sacra”.

Devido a essa herança erudita e mais complexa da música da sua terra natal, criar “este disco foi o realizar de um sonho muito grande, com muitos anos”. Waldemar, note-se, começou a sua carreira “a tocar em conjunto de baile, no tempo dos Jackson 5 e dos Shadows”. Mais tarde, confessa-nos, passou por uma fase em que apreciava o rock complexo dos Led Zepellin e de seguida por um enamoramento pelo rock sinfónico. “Por isso pode dizer-se que sempre gostei de música elaborada”.

No caso das cordas – que ocupam um terço do disco e, diga-se, são sumptuosas – Waldemar sempre esteve em crer “que davam nobreza, pelo menos às obras que têm dimensão para serem catapultadas”. O seu objectivo era “vestir músicas que por si só já são clássicos, com roupas mais nobres, sejam elas ocidentais ou africanas”. O músico diz “ter sentido que era possível fazer esta unidade entre a música africana e a ocidental em que ambas convivem sem paternalismos nem complexos”.

O plano, no entanto, era inicialmente diferente. “Eu era para fazer um disco de clássicos de Angola. Era isso que estava previsto. Mas depois achei que deviam ser clássicos da minha alma”. Alguns desses clássicos que foram gravados são clássicos “porque o povo angolano assim o decidiu: o Velha Chica, Teresa Ana são clássicos porque o povo assim quis”.

No baú para os eleitos

Mas uma boa parte dos temas aqui incluídos são clássicos apenas – e como diz o título – na alma de Waldemar Bastos. “Neste disco”, conta Waldemar, “há quatro ou cinco originais: o N’DuvaAuroraPerto e longePôr-do-solCalção roto no rabo, canções que têm dezenas de anos e nunca as tinha gravado em disco. O que eu senti é, que por andar a tocá-las em jantares de amigos há tantos anos, para mim já eram clássicos”.

Isto é, de facto, incomum na carreira de um músico: “Estas músicas estão entre as minhas preferidas”, confessa Waldemar, e nunca as gravou porque, diz com uma simplicidade desarmante, “a trajectória da vida assim não quis”. Ou não encaixavam nos discos que estava a gravar, ou ele achava que ainda não era o momento – e assim foram ficando guardadas no baú, disponíveis apenas para os eleitos, os amigos do coração, que convivem de perto com Waldemar. “Ainda tenho muitas canções feitas por gravar”, admite, e de facto não é comum que um músico guarde jóias tão tremendas sem sentir pressa de as pôr cá para fora.

Uma das curiosidades deste disco é que ele pode ou não ter estado na génese da separação entre Waldemar Bastos e a Luaka Bop. Há tempos, em conversa com um dos maiorais da editora criada por David Byrne a propósito de uma reedição que a editora fez de Tim Maia, o dito insider contava-nos que Bastos queria à viva força fazer discos com orquestra, enquanto a editora pretendia que ele se mantivesse exclusivamente na música tradicional angolana, única forma de vender.

Hoje, Waldemar diz que “as coisas não foram assim”. “Houve certas coisas que do nosso lado achámos que não foram cumpridas pela editora e resolvemos ir para outro lado”.

E por isso este álbum com cordas aconteceu finalmente, mas à maneira de Waldemar Bastos. Derek Nakamoto, produtor do disco, fez notar, numa nota à imprensa, que “era importante para o Waldemar que este disco acontecesse sem intromissão de uma editora ou qualquer outra pessoa que quisesse influenciar a direcção do disco. O meu compromisso com o Waldemar era que este seria ‘o seu disco’”.

Em Derek Nakamoto Waldemar encontrou, nas suas palavras, “o parceiro perfeito”. “Tive muita sorte com o Derek. Ele nasceu no Hawai e, apesar da distância que nos separa, encontrou em mim uma pessoa que tinha a mesma visão musical. Trabalhámos muito próximos e todo o trabalho de arranjos, que foi feito depois de gravamos a guitarra e a voz, nasceu naturalmente do nosso gosto pessoal, que era semelhante”. Esses arranjos não se limitam às cordas – outros materiais de luxo embelezam as canções: metais, órgãos vintage enchem os temas e trazem uma riqueza que estava ausente dos originais.

Um disco assim, contudo, não é fácil de levar ao palco – e foi preciso um encontro fortuito para que surgisse a oportunidade de finalmente fazer Classics of My Soul ao vivo. Waldemar estava “a ver uma exposição na Gulbenkian” quando encontrou Paul McCreesh, director da orquestra da instituição. “Ele veio falar comigo e disse-me que há muito seguia o meu trabalho. E daí nasceu a possibilidade de fazermos qualquer coisa juntos”.

Esse qualquer coisa vai acontecer amanhã. Na altura em que falámos com Waldemar ainda não tinha havido ensaios de conjunto, pese embora ele já soubesse o que ia ser o concerto: “O alinhamento está praticamente escolhido e vem muito deste disco. E em função do que está no disco vai haver momentos com orquestra e momentos sem orquestra – vai haver três ou quatro temas com a banda que me acompanha, mas vai dar-se prioridade à orquestra. Vai ter de se encontrar um ponto comum, com o aval de todos, que sirva a conjugação de ideias de todos”.

De seguida, Waldemar fará uma volta de 180 graus: “Vou dar seguimento ao meu lado afro-pop, na sequência do que fiz no Black Light, mas de forma mais aguda. Angola também deu muito à pop. E eu posso ir um pouco mais além e ser mais arrojado. Também posso fazer um entrosamento entre África e a música pop americana”.

Mas antes da pop vem o luxo, o belíssimo luxo do magnífico Classics of My Soul

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Waldemar Bastos não faz a coisa por menos: o concerto que dará amanhã, no Centro Cultural de Belém, em Lisboa, a meias com a Orquestra Gulbenkian será “um momento sublime e histórico”, acima de tudo “pela convivência da música clássica ocidental da orquestra com a ancestral e contemporânea de África” representada pelas composições de Bastos.

O concerto vem na sequência de Classics of My Soul, o mais recente álbum do músico angolano, em que este, como o título do disco indica, recria canções que para si atingiram o estatuto de clássicos – uma definição muito idiossincrática do autor, que carece de uma explicação que daremos mais tarde.

No disco o compositor tem a companhia da London Symphony Orchestra, em quatro dos temas, trazendo a canções telúricas, enraizadas na tradição angolana, uma grandeza que só o próprio lhes adivinhava.

“O meu pai era organista da Sé Catedral” de São Salvador do Congo (a actual M’banza-Congo), contou-nos o autor do magnífico Renascença (2004) há dias, nos camarins de uma gala da RTP, onde horas depois iria actuar. “Talvez por isso toco guitarra de forma diferente. No meu subconsciente sempre ouvi muito o enchimento das canções. Isto deve-se a habituar-me a escutar o meu pai tocar em casa música sacra”.

Devido a essa herança erudita e mais complexa da música da sua terra natal, criar “este disco foi o realizar de um sonho muito grande, com muitos anos”. Waldemar, note-se, começou a sua carreira “a tocar em conjunto de baile, no tempo dos Jackson 5 e dos Shadows”. Mais tarde, confessa-nos, passou por uma fase em que apreciava o rock complexo dos Led Zepellin e de seguida por um enamoramento pelo rock sinfónico. “Por isso pode dizer-se que sempre gostei de música elaborada”.

No caso das cordas – que ocupam um terço do disco e, diga-se, são sumptuosas – Waldemar sempre esteve em crer “que davam nobreza, pelo menos às obras que têm dimensão para serem catapultadas”. O seu objectivo era “vestir músicas que por si só já são clássicos, com roupas mais nobres, sejam elas ocidentais ou africanas”. O músico diz “ter sentido que era possível fazer esta unidade entre a música africana e a ocidental em que ambas convivem sem paternalismos nem complexos”.

O plano, no entanto, era inicialmente diferente. “Eu era para fazer um disco de clássicos de Angola. Era isso que estava previsto. Mas depois achei que deviam ser clássicos da minha alma”. Alguns desses clássicos que foram gravados são clássicos “porque o povo angolano assim o decidiu: o Velha Chica, Teresa Ana são clássicos porque o povo assim quis”.

No baú para os eleitos

Mas uma boa parte dos temas aqui incluídos são clássicos apenas – e como diz o título – na alma de Waldemar Bastos. “Neste disco”, conta Waldemar, “há quatro ou cinco originais: o N’DuvaAuroraPerto e longePôr-do-solCalção roto no rabo, canções que têm dezenas de anos e nunca as tinha gravado em disco. O que eu senti é, que por andar a tocá-las em jantares de amigos há tantos anos, para mim já eram clássicos”.

Isto é, de facto, incomum na carreira de um músico: “Estas músicas estão entre as minhas preferidas”, confessa Waldemar, e nunca as gravou porque, diz com uma simplicidade desarmante, “a trajectória da vida assim não quis”. Ou não encaixavam nos discos que estava a gravar, ou ele achava que ainda não era o momento – e assim foram ficando guardadas no baú, disponíveis apenas para os eleitos, os amigos do coração, que convivem de perto com Waldemar. “Ainda tenho muitas canções feitas por gravar”, admite, e de facto não é comum que um músico guarde jóias tão tremendas sem sentir pressa de as pôr cá para fora.

Uma das curiosidades deste disco é que ele pode ou não ter estado na génese da separação entre Waldemar Bastos e a Luaka Bop. Há tempos, em conversa com um dos maiorais da editora criada por David Byrne a propósito de uma reedição que a editora fez de Tim Maia, o dito insider contava-nos que Bastos queria à viva força fazer discos com orquestra, enquanto a editora pretendia que ele se mantivesse exclusivamente na música tradicional angolana, única forma de vender.

Hoje, Waldemar diz que “as coisas não foram assim”. “Houve certas coisas que do nosso lado achámos que não foram cumpridas pela editora e resolvemos ir para outro lado”.

E por isso este álbum com cordas aconteceu finalmente, mas à maneira de Waldemar Bastos. Derek Nakamoto, produtor do disco, fez notar, numa nota à imprensa, que “era importante para o Waldemar que este disco acontecesse sem intromissão de uma editora ou qualquer outra pessoa que quisesse influenciar a direcção do disco. O meu compromisso com o Waldemar era que este seria ‘o seu disco’”.

Em Derek Nakamoto Waldemar encontrou, nas suas palavras, “o parceiro perfeito”. “Tive muita sorte com o Derek. Ele nasceu no Hawai e, apesar da distância que nos separa, encontrou em mim uma pessoa que tinha a mesma visão musical. Trabalhámos muito próximos e todo o trabalho de arranjos, que foi feito depois de gravamos a guitarra e a voz, nasceu naturalmente do nosso gosto pessoal, que era semelhante”. Esses arranjos não se limitam às cordas – outros materiais de luxo embelezam as canções: metais, órgãos vintage enchem os temas e trazem uma riqueza que estava ausente dos originais.

Um disco assim, contudo, não é fácil de levar ao palco – e foi preciso um encontro fortuito para que surgisse a oportunidade de finalmente fazer Classics of My Soul ao vivo. Waldemar estava “a ver uma exposição na Gulbenkian” quando encontrou Paul McCreesh, director da orquestra da instituição. “Ele veio falar comigo e disse-me que há muito seguia o meu trabalho. E daí nasceu a possibilidade de fazermos qualquer coisa juntos”.

Esse qualquer coisa vai acontecer amanhã. Na altura em que falámos com Waldemar ainda não tinha havido ensaios de conjunto, pese embora ele já soubesse o que ia ser o concerto: “O alinhamento está praticamente escolhido e vem muito deste disco. E em função do que está no disco vai haver momentos com orquestra e momentos sem orquestra – vai haver três ou quatro temas com a banda que me acompanha, mas vai dar-se prioridade à orquestra. Vai ter de se encontrar um ponto comum, com o aval de todos, que sirva a conjugação de ideias de todos”.

De seguida, Waldemar fará uma volta de 180 graus: “Vou dar seguimento ao meu lado afro-pop, na sequência do que fiz no Black Light, mas de forma mais aguda. Angola também deu muito à pop. E eu posso ir um pouco mais além e ser mais arrojado. Também posso fazer um entrosamento entre África e a música pop americana”.

Mas antes da pop vem o luxo, o belíssimo luxo do magnífico Classics of My Soul