Falar para não desaparecer
Imobilizada até à cintura, e no entanto ainda capaz de falar (nem que seja do tempo, “há quem o faça”), Winnie lembra-se de quando “ainda tinha pernas” – mas ah, não é caso para desanimar. Os dias não deixaram de ser felizes, apesar de tudo. A mala, a sombrinha, a escova dos dentes, o chapéu, o xarope vitamínico, o espelho, a lupa, os óculos, a lima, o revólver Brownie e a caixa de música não saíram do sítio. E ela ainda não ficou sem palavras, mesmo que não sejam para desperdiçar.
Emília Silvestre, por exemplo, ainda a ouve falar. Ouve-a falar quando acorda, ouve-a falar quando está a dormir. Ouve-a falar quando a peça acaba e imaginamos Winnie já totalmente enterrada – cintura, pescoço, cabeça e tudo – e, mesmo assim, a repetir que os dias não deixaram de ser felizes, apesar de tudo. Mas ouve-a falar sobretudo noutro texto de Samuel Beckett, Não Eu, escrito dez anos depois deste Ah, os dias felizes (1962) – um texto em que a actriz se enterrou viva em 2006, encenada pelo mesmo Nuno Carinhas (era um dos segmentos do políptico Todos os que Falam), e que ainda é capaz de dizer de uma ponta à outra, como se estivesse possuída pelas palavras mais terminais de Samuel Beckett.
Cronologicamente, Ah, os dias felizes, a produção do Teatro Nacional São João (TNSJ) que agora se estreia no Centro Cultural de Belém, em Lisboa (hoje e amanhã, às 21h), e que depois viaja até ao Porto (de 15 a 29, no TNSJ), Almada (5 a 8 de Dezembro, Teatro Municipal Joaquim Benite) e Braga (Theatro Circo, 13 de Dezembro), é o segundo capítulo dessa história comum. Mas actriz e encenador não vêem as coisas necessariamente por esta ordem – aliás, vêem-nas exactamente pela ordem inversa, admitindo que a boca sem corpo que continua a falar sem parar em Não Eu seja o que resta de Winnie pós-Ah, os dias felizes. “Vejo o Não Eu que fiz com a Emília como uma consequência desta peça, e não o contrário. Aqui a mulher que fala ainda tem corpo, embora esteja a desaparecer; no Não Eu já só resta uma boca. É como se Ah, os dias felizes fosse um flashback”, diz o encenador.
Para Emília, tem sido: “O Não Eu era toda uma experiência: 20 minutos a vomitar palavras... Eu saía de cena e não conseguia parar; se fosse preciso falava uma hora seguida, com qualquer pessoa. Agora o efeito repete-se: acordo de noite a dizer este texto, como acordava de noite a dizer o Não Eu. Chega-se a odiar, devo dizer.” E no entanto, acrescenta imediatamente a actriz, é incomparável: “Se eu quiser dizer o Não Eu agora, sete anos depois, consigo. É uma coisa assustadora. Os textos do Beckett obrigam a uma concentração tal que ficam cá.” E estando cá fazem-se coisas com eles, afirma Nuno Carinhas: “Usámos muito a experiência e os materiais do Não Eu, claro. É um texto indelével para a Emília, um texto completamente assimilado, completamente entranhado. Esta forma de fazer e de dizer que é característica do Beckett – as pontuações, as pausas, a fragmentação da linguagem – acaba por ganhar ressonância no actor, e no encenador também. Deixa muitas sequelas.” Sobretudo para quem fica sozinho com ele em palco – ou quase, como Winnie, que ainda tem para quem falar, apesar de tudo (“Pobre querido Willie. Só serve para dormir”). Emília: “O Willie [João Cardoso] está sempre em diálogo com ela, mesmo que tenha voltado a entrar em coma e já não a oiça. Mas nesta peça o Beckett deixou 30 páginas de texto para a actriz e meia dúzia de linhas para o actor. É brutal. Saio exausta dos ensaios, apesar de não fazer quase nada, porque para todos os efeitos estou imobilizada – só que é impossível não implicar o corpo todo nesta personagem. É tão difícil. Acho que é o texto mais difícil que fiz até hoje.”
Do princípio ao fim
Ao contrário de Adão e Eva, figuras de um tempo em que tudo estava a começar, Winnie e Willie, o casal pequeno-burguês que Beckett condena a uma vida em morte debaixo do sol inclemente deste deserto anónimo, são figuras de um tempo em que tudo está a terminar. Mas no fim, como no princípio, o verbo parece ter um poder fundador. Para Winnie, falar é uma prova de vida – seguramente, a última prova de vida. “Os dois lutam contra a evidência do seu próprio estado terminal. Mas ela, à medida que se vê privada do movimento, usa a linguagem como forma de ocupar o tempo e o espaço, como forma de não desaparecer”, sublinha Emília Silvestre.
Nesse sentido, Ah, os dias felizes são uma metáfora particularmente tentadora neste Outono do nosso descontentamento (ainda que, para o encenador e director artístico do TNSJ, o espectáculo fizesse sentido qualquer que fosse a altura, e especialmente nesta em que pode fazer corpo com outro Beckett, À Espera de Godot, que o Ensemble está a coproduzir com o São Luiz, em Lisboa, e que virá ao Porto em Janeiro). “Neste momento bem podemos perguntar-nos onde estão os dias felizes. O simples facto de se dizer o nome desta peça neste momento... Este lado da sobrevivência, da resistência, da sujeição a uma circunstância imposta de fora para dentro é muito sugestivo. Mas em Beckett todas as perguntas têm vários sentidos, e as ilações que se podem tirar também. Não há aqui nada para fechar, pelo contrário: está tudo em aberto e é para abrir cada vez mais, em círculo”, defende Nuno Carinhas.
Imobilizada mais do que até à cintura (agora é até ao pescoço), e no entanto ainda capaz de falar, Winnie já não espera nada, a não ser o fim de mais um dia feliz, apesar de tudo. “Já não acredita que alguém a desenterre – nem Deus. Aliás, ela própria diz: ‘Dantes rezava’. Tal como outras personagens do Beckett, estes dois parecem ratos de laboratório submetidos a uma experiência, para ver o que é que dá...”
Enquanto a campainha não toca para declarar oficialmente encerrado o dia, mais um dia, dá pelo menos para abrir e fechar a boca. “Acho que no terceiro acto, aquele que não existe no texto, a Winnie já está completamente enterrada e mesmo assim continua a falar”. Haverá momentos em que se cala. Mas é só para não desperdiçar as palavras todas – podem fazer falta, apesar de tudo.
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Imobilizada até à cintura, e no entanto ainda capaz de falar (nem que seja do tempo, “há quem o faça”), Winnie lembra-se de quando “ainda tinha pernas” – mas ah, não é caso para desanimar. Os dias não deixaram de ser felizes, apesar de tudo. A mala, a sombrinha, a escova dos dentes, o chapéu, o xarope vitamínico, o espelho, a lupa, os óculos, a lima, o revólver Brownie e a caixa de música não saíram do sítio. E ela ainda não ficou sem palavras, mesmo que não sejam para desperdiçar.
Emília Silvestre, por exemplo, ainda a ouve falar. Ouve-a falar quando acorda, ouve-a falar quando está a dormir. Ouve-a falar quando a peça acaba e imaginamos Winnie já totalmente enterrada – cintura, pescoço, cabeça e tudo – e, mesmo assim, a repetir que os dias não deixaram de ser felizes, apesar de tudo. Mas ouve-a falar sobretudo noutro texto de Samuel Beckett, Não Eu, escrito dez anos depois deste Ah, os dias felizes (1962) – um texto em que a actriz se enterrou viva em 2006, encenada pelo mesmo Nuno Carinhas (era um dos segmentos do políptico Todos os que Falam), e que ainda é capaz de dizer de uma ponta à outra, como se estivesse possuída pelas palavras mais terminais de Samuel Beckett.
Cronologicamente, Ah, os dias felizes, a produção do Teatro Nacional São João (TNSJ) que agora se estreia no Centro Cultural de Belém, em Lisboa (hoje e amanhã, às 21h), e que depois viaja até ao Porto (de 15 a 29, no TNSJ), Almada (5 a 8 de Dezembro, Teatro Municipal Joaquim Benite) e Braga (Theatro Circo, 13 de Dezembro), é o segundo capítulo dessa história comum. Mas actriz e encenador não vêem as coisas necessariamente por esta ordem – aliás, vêem-nas exactamente pela ordem inversa, admitindo que a boca sem corpo que continua a falar sem parar em Não Eu seja o que resta de Winnie pós-Ah, os dias felizes. “Vejo o Não Eu que fiz com a Emília como uma consequência desta peça, e não o contrário. Aqui a mulher que fala ainda tem corpo, embora esteja a desaparecer; no Não Eu já só resta uma boca. É como se Ah, os dias felizes fosse um flashback”, diz o encenador.
Para Emília, tem sido: “O Não Eu era toda uma experiência: 20 minutos a vomitar palavras... Eu saía de cena e não conseguia parar; se fosse preciso falava uma hora seguida, com qualquer pessoa. Agora o efeito repete-se: acordo de noite a dizer este texto, como acordava de noite a dizer o Não Eu. Chega-se a odiar, devo dizer.” E no entanto, acrescenta imediatamente a actriz, é incomparável: “Se eu quiser dizer o Não Eu agora, sete anos depois, consigo. É uma coisa assustadora. Os textos do Beckett obrigam a uma concentração tal que ficam cá.” E estando cá fazem-se coisas com eles, afirma Nuno Carinhas: “Usámos muito a experiência e os materiais do Não Eu, claro. É um texto indelével para a Emília, um texto completamente assimilado, completamente entranhado. Esta forma de fazer e de dizer que é característica do Beckett – as pontuações, as pausas, a fragmentação da linguagem – acaba por ganhar ressonância no actor, e no encenador também. Deixa muitas sequelas.” Sobretudo para quem fica sozinho com ele em palco – ou quase, como Winnie, que ainda tem para quem falar, apesar de tudo (“Pobre querido Willie. Só serve para dormir”). Emília: “O Willie [João Cardoso] está sempre em diálogo com ela, mesmo que tenha voltado a entrar em coma e já não a oiça. Mas nesta peça o Beckett deixou 30 páginas de texto para a actriz e meia dúzia de linhas para o actor. É brutal. Saio exausta dos ensaios, apesar de não fazer quase nada, porque para todos os efeitos estou imobilizada – só que é impossível não implicar o corpo todo nesta personagem. É tão difícil. Acho que é o texto mais difícil que fiz até hoje.”
Do princípio ao fim
Ao contrário de Adão e Eva, figuras de um tempo em que tudo estava a começar, Winnie e Willie, o casal pequeno-burguês que Beckett condena a uma vida em morte debaixo do sol inclemente deste deserto anónimo, são figuras de um tempo em que tudo está a terminar. Mas no fim, como no princípio, o verbo parece ter um poder fundador. Para Winnie, falar é uma prova de vida – seguramente, a última prova de vida. “Os dois lutam contra a evidência do seu próprio estado terminal. Mas ela, à medida que se vê privada do movimento, usa a linguagem como forma de ocupar o tempo e o espaço, como forma de não desaparecer”, sublinha Emília Silvestre.
Nesse sentido, Ah, os dias felizes são uma metáfora particularmente tentadora neste Outono do nosso descontentamento (ainda que, para o encenador e director artístico do TNSJ, o espectáculo fizesse sentido qualquer que fosse a altura, e especialmente nesta em que pode fazer corpo com outro Beckett, À Espera de Godot, que o Ensemble está a coproduzir com o São Luiz, em Lisboa, e que virá ao Porto em Janeiro). “Neste momento bem podemos perguntar-nos onde estão os dias felizes. O simples facto de se dizer o nome desta peça neste momento... Este lado da sobrevivência, da resistência, da sujeição a uma circunstância imposta de fora para dentro é muito sugestivo. Mas em Beckett todas as perguntas têm vários sentidos, e as ilações que se podem tirar também. Não há aqui nada para fechar, pelo contrário: está tudo em aberto e é para abrir cada vez mais, em círculo”, defende Nuno Carinhas.
Imobilizada mais do que até à cintura (agora é até ao pescoço), e no entanto ainda capaz de falar, Winnie já não espera nada, a não ser o fim de mais um dia feliz, apesar de tudo. “Já não acredita que alguém a desenterre – nem Deus. Aliás, ela própria diz: ‘Dantes rezava’. Tal como outras personagens do Beckett, estes dois parecem ratos de laboratório submetidos a uma experiência, para ver o que é que dá...”
Enquanto a campainha não toca para declarar oficialmente encerrado o dia, mais um dia, dá pelo menos para abrir e fechar a boca. “Acho que no terceiro acto, aquele que não existe no texto, a Winnie já está completamente enterrada e mesmo assim continua a falar”. Haverá momentos em que se cala. Mas é só para não desperdiçar as palavras todas – podem fazer falta, apesar de tudo.