Canções militantes de despedida
Hans Eisler (1898-1962) foi um autor com dois mestres, Arnold Schoenberg primeiro e Bertolt Brecht depois. É sobretudo pela colaboração com o segundo que ficou conhecido, obscurecendo a relação com o primeiro – com quem se incompatibilizou por motivos políticos – e desse modo também, e em termos mais genéricos, a sua inscrição na tradição musical austro-alemã.
Já há 15 anos, Mathias Goerne dedicou um memorável recital (Decca) ao Hollywood Songbook de Eisler – assim chamado por as canções terem sido escritas no período de exílio em Hollywood, dele e de tantos outros. Agora fez um hiato nas gravações de canções de Schubert que tem vindo exaustivamente a fazer, voltando de novo a Eisler – e o disco é assombroso.
Estão presentes, é claro, os temas mais caracteristicamente “brechtianos”, como duas canções para a peça Cabeças Redondas e Cabeças Bicudas e sobretudo o célebre Canto de Solidariedade escrito para esse exemplo de “cinema marxista” que foi Kuhle Wampe, escrito por Brecht e realizado por Slatan Dudow, tema que, aliás, extravasou o âmbito do filme e se tornou num hino militante – “Avante, não esqueçais jamais/ a solidariedade”.
Mas este disco tem duas particularidades, advindas dos extremos da carreira de Eisler: a notável Sonata para Piano nº 1 – com uma interpretação admirável de Thomas Larcher – e essa ignorada obra-prima crepuscular que são os Ernste Gesänge, com textos de Hölderlin e outros, com a particularidade de, à voz, se juntar não o piano, mas um conjunto de cordas. O título, como se notará, é uma alusão aos Vier Ernste Gesänge de Brahms, a escrita das cordas não deixa de trazer uma inesperada memória do Schönberg de Noite Transfigurada e, ouse-se mesmo dizer, um tal tom crepuscular apenas tem paralelo nessa outra despedida de um compositor aliás de todo oposto a Eisler em termos estéticos e políticos, as Quatro Últimas Canções de Strauss.
O tom é carregado pela voz tão particularmente sombria de Goerne – e este é um daqueles raros casos em que na audição nos ocorre mesmo que é como se a obra tivesse sido composta para tal intérprete: que obra espantosa e que transcendente interpretação! Mas, facto deveras importante, esse tom sombrio “ilumina” também as canções do exílio, sobretudo com textos de Brecht - mas há outros de Mörike e Heine - , canções extremamente doridas e saudosas, culminando em Über den Selbstmord/Sobre o Suicídio (composta para a peça A Boa Alma de Setsuan), que no canto de Goerne é uma descida aos abismos como imaginávamos ser possível num tema brechtiano.
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Hans Eisler (1898-1962) foi um autor com dois mestres, Arnold Schoenberg primeiro e Bertolt Brecht depois. É sobretudo pela colaboração com o segundo que ficou conhecido, obscurecendo a relação com o primeiro – com quem se incompatibilizou por motivos políticos – e desse modo também, e em termos mais genéricos, a sua inscrição na tradição musical austro-alemã.
Já há 15 anos, Mathias Goerne dedicou um memorável recital (Decca) ao Hollywood Songbook de Eisler – assim chamado por as canções terem sido escritas no período de exílio em Hollywood, dele e de tantos outros. Agora fez um hiato nas gravações de canções de Schubert que tem vindo exaustivamente a fazer, voltando de novo a Eisler – e o disco é assombroso.
Estão presentes, é claro, os temas mais caracteristicamente “brechtianos”, como duas canções para a peça Cabeças Redondas e Cabeças Bicudas e sobretudo o célebre Canto de Solidariedade escrito para esse exemplo de “cinema marxista” que foi Kuhle Wampe, escrito por Brecht e realizado por Slatan Dudow, tema que, aliás, extravasou o âmbito do filme e se tornou num hino militante – “Avante, não esqueçais jamais/ a solidariedade”.
Mas este disco tem duas particularidades, advindas dos extremos da carreira de Eisler: a notável Sonata para Piano nº 1 – com uma interpretação admirável de Thomas Larcher – e essa ignorada obra-prima crepuscular que são os Ernste Gesänge, com textos de Hölderlin e outros, com a particularidade de, à voz, se juntar não o piano, mas um conjunto de cordas. O título, como se notará, é uma alusão aos Vier Ernste Gesänge de Brahms, a escrita das cordas não deixa de trazer uma inesperada memória do Schönberg de Noite Transfigurada e, ouse-se mesmo dizer, um tal tom crepuscular apenas tem paralelo nessa outra despedida de um compositor aliás de todo oposto a Eisler em termos estéticos e políticos, as Quatro Últimas Canções de Strauss.
O tom é carregado pela voz tão particularmente sombria de Goerne – e este é um daqueles raros casos em que na audição nos ocorre mesmo que é como se a obra tivesse sido composta para tal intérprete: que obra espantosa e que transcendente interpretação! Mas, facto deveras importante, esse tom sombrio “ilumina” também as canções do exílio, sobretudo com textos de Brecht - mas há outros de Mörike e Heine - , canções extremamente doridas e saudosas, culminando em Über den Selbstmord/Sobre o Suicídio (composta para a peça A Boa Alma de Setsuan), que no canto de Goerne é uma descida aos abismos como imaginávamos ser possível num tema brechtiano.