As aventuras de Banksy em Nova Iorque

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Final da tarde e estamos no cruzamento da 24ª Avenida com a 6ª Avenida, no coração de Manhattan, Nova Iorque, quando deparamos com Joanne Clark a fotografar serenamente uma parede. A objectiva da câmara procura uma inscrição no muro onde se vislumbra um cão a urinar para cima de uma boca-de-incêndio.

Pertence ao incógnito artista de rua inglês Banksy, que durante o mês de Outubro disseminou diariamente pela cidade o projecto de intervenções artísticas Better Out Than In, à base de stencil, esculturas de grande escala, videoarte ou acções performativas.

Quando nos aproximamos, Joanne está só. Diz-nos que veio de Baltimore e que anda a fotografar há dois dias as intervenções que o artista tem deixado pela cidade. “Mas a maior parte já foi alvo de interferências e uma ou outra desapareceu”, diz-nos desiludida.

Olha-se para a parede e percebe-se o que quer dizer, com muitos rabiscos recentes a rodearem a gravura. Em destaque, a frase “Banksy is french”, alusão a Blek Le Rat, graffiter francês que o terá influenciado. Ao lado, outros arabescos de cariz provocatório ali postos por grafiteiros locais, como Omar.

Em segundos, mais pessoas se vão aglomerando e tirando fotografias. Às tantas, um grupo de turistas mexicanos pergunta o que se passa. Alguém responde que é uma obra de Banksy. “O quê? O artista de que toda a gente fala e ninguém sabe quem é? Quero uma foto”, diz uma senhora para o companheiro. Instantes depois, ei-la ao lado do cão que urina para a boca-de-incêndio, a sorrir para a fotografia. Vão chegando ainda mais pessoas. Além de tirarem fotos, discutem a validade do projecto e comentam os arabescos. “É ciúme e inveja”, diz um. “É uma forma de marcarem o seu território como os cães”, afiança outro com ar entendido. “Estão chateados porque Banksy vem de fora e está no território deles.”

De repente, já se formou uma pequena multidão. “Vou-me embora, isto começa a ser de mais”, retira-se Joanne. “E já pensaram que o próprio Banksy pode estar aqui entre nós ou ser um de nós?”, ri-se outro visitante. Com pequenas variações, o cenário foi-se repetindo ao longo das visitas que efectuámos a locais onde Banksy havia intervindo. Era fácil perceber quando nos aproximávamos de um mural da sua autoria: bastava avistar uma pequena multidão de telemóvel ou máquina fotográfica na mão.

No museu a céu aberto da cidade de Nova Iorque, conseguiu colocar toda a gente a falar dele. A sua fama precede-o. Para além de obras efémeras espalhadas pelo mundo criadas ao longo dos últimos 15 anos, tem também lugar em galerias e museus. Até o vereador Peter Vallone Jr, um conhecido activista anti-graffiti, criticou as acções contra Banksy perpetradas pelos rivais: “É um vândalo, mas com talento, ao contrário dos outros que mais não fazem do que destruir o que ele faz, tentando ganhar notoriedade à sua custa.” Já o presidente da Câmara, Michael Bloomberg, foi menos tolerante, declarando ao New York Post que “o graffiti estraga a propriedade e é um sinal de decadência e de perda de controlo”. Ainda assim, a tão falada perseguição policial não pareça ter passado de ruído mediático.

Mestre manipulador

O trabalho de Banksy, como dos artistas de rua em geral, é atravessado por conflitos, tangentes e tensões. Hoje as cidades integram inúmeras tendências, das mais gratuitas às mais exigentes em termos de sofisticação artística. Se, por um lado, o graffiti mais errático mantém uma presença inflexível, por outro há cada vez mais artistas com raízes no espaço urbano a transitarem para as galerias. O caso de Banksy tem algumas singularidades. Conquistou galerias e museus e agora regressa à rua, com algumas vozes críticas a questionarem a sua integridade, porque censura o capitalismo, mas integra o sistema especulativo da arte.

Os que estão do seu lado dizem que não é assim. Ele actua a partir dos interstícios do sistema, aproveitando os seus buracos negros, precisamente para denunciar o sistema, transformando-o. O (falso) documentário que realizou em 2010, Exit Through The Gift Shop, acabava por ser uma reflexão sobre essas dinâmicas.

O projecto de Nova Iorque constituiu um gigante acontecimento comunicacional, da cidade para o mundo, via Internet, e depois para a imprensa que nunca mais largou o assunto de vista. O dispositivo era simples. Mas só funciona quando falamos de alguém com grande visibilidade. Na sua conta do Instagram e no sítio oficial da Internet, ia publicando fotos das intervenções, com indicação do local. Pouco tempo depois, o dito local enchia-se de pessoas, as redes sociais ampliavam o acontecimento e as televisões e os jornais de todo o mundo falavam do ocorrido.

O facto de ninguém saber quem é Banksy ajuda a criar um efeito de adesão. Ao longo do mês, várias fotos foram publicadas por indivíduos que juraram tê-lo visto, mas o mistério permanece. Para o artista Miguel Januário, mais conhecido pela designação +MaisMenos-, também ele entre a rua e a galeria (There is nothing money can buy foi a sua última exposição), a “histeria à volta do culto da personalidade misteriosa” contribuiu para que a qualidade dos trabalhos já não seja sequer importante — basta “apenas a sua existência, a sua sombra”.

Alexandre Farto (ou seja, Vhils), o artista de rua português com mais exposição internacional, diz que o fascínio é explicado por esse anonimato, numa época “em que tudo é acessível, em que se sabe de tudo, em que tudo é exposto pelos media e estamos a perder privacidade e liberdades em nome da segurança publica”.

Mas é preciso não esquecer “o conteúdo da obra”, acrescenta, referindo o enquadramento específico no espaço público, “o uso magistral da ironia, o modo como Banksy manipula os signos e os suportes do espaço urbano e, claro, a sua simplicidade formal”.

É isso. Ele é um mestre manipulador. Alguém que sabe fazer uso dos meios certos para comunicar a sua obra. O projecto de Nova Iorque confirmou essa propensão de forma triunfal. “O uso subversivo das reacções públicas e a histeria colectiva que se gerou à volta são, em si mesmos, os pontos mais fortes do projecto”, sublinha Alexandre. “A figura romântica de um vigilante encapuzado, um super-herói que desafia as autoridades em nome da arte popular, fá-lo conquistar quem tem sede do genuíno.”

Apesar das inúmeras narrativas criadas à sua volta pelos media, Banksy resiste a todos os simplismos. Ou como diz Alexandre, “parece ter chegado ao ponto em que manipula a manipulação e subverte a subversão, ao ponto em que deixa de ser possível distinguir o que é ou não genuíno, o que é ou não manipulado ou manipulador”. “À primeira vista”, continua, “pode parecer que as suas ideias se banalizam com esta exposição, mas numa segunda leitura verificamos a subtileza como joga com todos estes elementos”.



Provocações (de parte a parte)

Desde o primeiro dia de Better Out than In que as criações de Banksy foram alvo de retaliações. O primeiro stencil, em Chinatown, que retratava duas crianças a retirarem uma lata de spray de um aviso na parede (no qual se lia a frase o “graffiti é crime”), foi coberto com tinta. Ao lado desse mural existia um número de telefone para o qual se podia ligar, como nos audioguias explicativos dos museus. O mecanismo satírico viria a ser repetido mais vezes, numa duplicidade constante com o universo canónico da arte contemporânea da qual resultaram desenvolvimentos inesperados ao longo do mês.

Numa das acções, Banksy montou uma banca no Central Park com trabalhos originais seus ao preço único de 44 euros — foram vendidos apenas seis. Como é evidente, se os transeuntes soubessem que estavam perante peças originais do artista teriam sido todas vendidas num abrir e fechar de olhos, até porque as suas obras valem somas bastante avultadas em leilões de arte. Uma semana mais tarde, um grupo de amigos colocou à venda, no mesmo local, ao mesmo preço, réplicas das suas peças. Resultado? Os 40 quadros expostos foram vendidos no espaço de uma hora, apesar dos avisos de que eram cópias. “Não teríamos vendido nada se não tivesse havido o alarido à volta da venda da semana passada”, reconheceu David Cicirelli, um dos mentores da ideia.

Outra história inusitada aconteceu em Brooklyn, quando alguns moradores taparam o desenho de um castor na parede com papelão, passando a cobrar 20 euros a quem quisesse tirar uma foto. Argumento utilizado: “Estamos muito zangados porque estas pessoas nunca viriam ao nosso bairro a não ser por Banksy.”

Num editorial de boas-vindas, o New York Times criticou os que tentaram lucrar ou que foram hostis à presença do artista na cidade, embora há dias a relação com o jornal tivesse azedado. Banksy queria ver publicado um artigo em que mostrava desagrado pelo novo World Trade Center, argumentando que não tem dignidade e não é arrojado. O jornal optou pela não-publicação. Banksy inscreveu numa parede a mensagem “este local contém mensagens bloqueadas” e um artigo fictício acabou por ser revelado, no qual se pode ler que “a maior monstruosidade de Nova Iorque não é o graffiti, mas a construção do Ground Zero”. Em simultâneo, um camião de entregas de matadouro, repleto de animais de peluche, foi circulando por vários bairros, e uma estátua gigante de Ronald McDonald, com um miúdo a engraxar-lhe os sapatos, começou a ser vista à hora de almoço em diferentes pontos da cidade. Ou seja, um rodopio diário de iniciativas e provocações e despoletar.

Tudo acções que indiciam que, ao lado de Banksy, opera uma verdadeira equipa. Alexandre Farto já esteve envolvido em projectos com ele e recorda “uma equipa incansável e muito profissional”. Nunca contactou directamente com o inglês, embora tenha recebido “feedback dele de forma indirecta”. Conclui: “Seria impossível o anonimato se não se protegesse.”

Público, privado

Uma das acusações mais vulgares que os artistas de rua ouvem é a de que vandalizam propriedade privada. Os mais esclarecidos defendem-se argumentando que apenas actuam em zonas onde a sua acção não vai gerar contra-indicações, como prédios devolutos ou locais onde já existem inscrições. Os mais politizados alegam que o espaço público está cada vez mais privatizado, com as cidades cheias de signos visuais sobre os quais não há controlo e com o único critério a ser o económico: quem tem dinheiro para pagar pode pôr nas paredes o que quiser. A questão da propriedade privada é muito delicada, porque mexe na medula de um dos alicerces das sociedades contemporâneas — o modo como o ser se confunde com o ter.

“A noção de propriedade privada é clara no que concerne ao que se situa dentro das paredes, mas o espaço visual que se encontra no espaço público já tem uma dimensão pública, mesmo se detido de forma privada. Logo, tem uma componente pública”, defende Alexandre. “Há um ordenamento restrito para a propriedade privada que se encontra virada para o espaço publico. A lei não permite que pinte a minha parede de branco sem pedir autorização às autoridades. Por outro lado, o espaço dito verdadeiramente público é cada vez mais privatizado. Ou seja, é público, mas gerido de forma privada, não acessível a todos.”

E depois existem casos paradoxais como o que fomos encontrar num sábado de manhã, em Tribeca, zona de restaurantes e comércio requintado. Entre as ruas Jay e a Staple, deparámo-nos com uma representação das Torres Gémeas com uma flor descaída. Durante a noite alguém pintou de azul a totalidade da gravura e agora havia quem retirasse essa mesma tinta. O curioso neste caso é que o proprietário do imóvel havia colocado uma folha de acrílico à volta da gravura, precisamente para impedir que alguém agisse sobre a dita. Conclusão: a tinta derramada sobre o stencil podia agora ser retirada. Era o que fazia Rolf Meyer, cercado por curiosos, quando nos aproximámos. “Quem terá feito isto e porquê?”, interrogava-se um casal de turistas. “É perfeita e é um tributo tão bonito à cidade”, diziam, enquanto Rolf Meyer esfregava para extrair a tinta azul. “Faço-o porque as pessoas vêm aqui na expectativa de encontrar qualquer coisa bela, com a qual se possam relacionar, e ver isto coberto parece-me intolerável. Nestes casos fazia todo o sentido existir legislação que protegesse e preservasse esta arte, desde que lhe fosse reconhecida qualidade e interesse público.” A ouvir a conversa está Anne Pointer, que concorda, embora reflicta que isso colocaria mais uma série de interrogações, porque na génese da arte de rua está a sua efemeridade e o carácter contingente. “É verdade”, concorda Meyer, “mas devitava-se este tipo de retaliações ou então, ainda pior, que as peças fossem retiradas das paredes para depois serem vendidas a preços exorbitantes”.

A atracção da rua

Poucas horas depois, do outro lado rio Hudson, em Brooklyn, na esquina da King com a Van Hunt, deparamos com uma das peças mais icónicas de toda a operação: um balão em forma de coração, agora já alterado em relação à sua configuração inicial. Ao seu lado está um individuo de fato-macaco amarelado. Diz chamar-se Perry Levy e identifica-se, rindo, como pertencendo à “Sociedade de Restauro de Banksy”: “É uma sociedade com um só membro: eu.”

Perguntamos no que consiste a sua actividade: “Todos os dias visito o maior número possível de obras e vou restaurando o que posso, por causa das agressões.” Revela que as hostilidades têm sido reprimidas pela população. E dá o exemplo da senhoria de um prédio em Brooklyn que contratou seguranças e instalou uma grade de metal para proteger uma das peças.

Onde não existiu espaço para investidas hostis foi em Chelsea, por debaixo da High Line, em plena zona de galerias de arte, onde Banksy criou uma espécie de “galeria” ao ar livre, com direito a seguranças, para expor dois quadros feitos em colaboração com a dupla brasileira Os Gémeos. Uma multidão aglomerava-se nas imediações, enquanto ao lado uma magnífica exposição de Sophie Calle estava vazia. Mais uma vez, o dispositivo era irónico, com bancos dispostos em frente aos quadros, e seguranças que se comportavam como se estivessem num museu, impondo regras.

Se a ideia de Banksy em Nova Iorque era mostrar que a interacção entre o ambiente urbano e os artistas que olham para a cidade como uma tela gigante cativa cada vez mais a imaginação, pode dizer-se que conseguiu. O apelo primordial da rua mantém-se, mesmo se a arte urbana se introduziu nas plataformas da arte contemporânea. “Ele revela um posicionamento crítico em relação a esse contexto”, analisa Miguel Januário, “mas também utiliza esse registo a seu favor, consciente de que a sua projecção vive também do facto de pertencer a esse mundo especulativo que é o da arte contemporânea, o mesmo que lhe permitiu ter recursos para elevar as intervenções a este nível de investimento”.

Para estes artistas a rua oferece possibilidades difíceis de encontrar num espaço expositivo fechado. “Tem uma natureza específica, uma vitalidade que não encontramos noutros meios”, reflecte Alexandre. “É inebriante. Para alguém que começou na rua, essa atracção não se perde. Ao mesmo tempo, a natureza subversiva da obra dele encontra na rua o ambiente perfeito.”

Mas não é apenas o espaço onde a arte deve figurar que é problematizado. São também os mecanismos de legitimação — quem dita o que deve ou não ser aceite para ser exposto — e o mercado. “Na sua acção há também uma problematização do mercado da arte, do valor económico da arte face ao seu interesse estético ou histórico, com base no ponto de que, à partida, o que se faz no espaço público de forma ilegal e efémera devia ser um acto puro, não capitalizável.” Na visão de Alexandre Farto, este tipo de movimento artístico não discrimina entre o espaço interior e exterior e não depende da galeria para o seu impacto. “Ou seja, subverte à partida o espaço sagrado da arte contemporânea ligada como está ao mercado do capital. Faz uso dele, mas não depende dele.”

De regresso a Manatthan, na esquina da 7ª Avenida com a Cooper Square, a figura de um padre foi incrustada num muro móvel, numa área de construção, como se fosse um confessionário. É quase noite quando descobrimos a peça de Banksy. Desta vez não há nenhuma multidão. Apenas duas bicicletas junto ao muro e um homem encostado a uma parede em frente. Sorrimos-lhe, esperando alguma cumplicidade; nenhuma reacção. Tem a cabeça ligeiramente inclinada, encoberta por um capuz de camisola desportiva e não é possível vislumbrar-lhe o rosto. Por momentos entregamo-nos à fantasia. Podia ser Banksy. 

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Final da tarde e estamos no cruzamento da 24ª Avenida com a 6ª Avenida, no coração de Manhattan, Nova Iorque, quando deparamos com Joanne Clark a fotografar serenamente uma parede. A objectiva da câmara procura uma inscrição no muro onde se vislumbra um cão a urinar para cima de uma boca-de-incêndio.

Pertence ao incógnito artista de rua inglês Banksy, que durante o mês de Outubro disseminou diariamente pela cidade o projecto de intervenções artísticas Better Out Than In, à base de stencil, esculturas de grande escala, videoarte ou acções performativas.

Quando nos aproximamos, Joanne está só. Diz-nos que veio de Baltimore e que anda a fotografar há dois dias as intervenções que o artista tem deixado pela cidade. “Mas a maior parte já foi alvo de interferências e uma ou outra desapareceu”, diz-nos desiludida.

Olha-se para a parede e percebe-se o que quer dizer, com muitos rabiscos recentes a rodearem a gravura. Em destaque, a frase “Banksy is french”, alusão a Blek Le Rat, graffiter francês que o terá influenciado. Ao lado, outros arabescos de cariz provocatório ali postos por grafiteiros locais, como Omar.

Em segundos, mais pessoas se vão aglomerando e tirando fotografias. Às tantas, um grupo de turistas mexicanos pergunta o que se passa. Alguém responde que é uma obra de Banksy. “O quê? O artista de que toda a gente fala e ninguém sabe quem é? Quero uma foto”, diz uma senhora para o companheiro. Instantes depois, ei-la ao lado do cão que urina para a boca-de-incêndio, a sorrir para a fotografia. Vão chegando ainda mais pessoas. Além de tirarem fotos, discutem a validade do projecto e comentam os arabescos. “É ciúme e inveja”, diz um. “É uma forma de marcarem o seu território como os cães”, afiança outro com ar entendido. “Estão chateados porque Banksy vem de fora e está no território deles.”

De repente, já se formou uma pequena multidão. “Vou-me embora, isto começa a ser de mais”, retira-se Joanne. “E já pensaram que o próprio Banksy pode estar aqui entre nós ou ser um de nós?”, ri-se outro visitante. Com pequenas variações, o cenário foi-se repetindo ao longo das visitas que efectuámos a locais onde Banksy havia intervindo. Era fácil perceber quando nos aproximávamos de um mural da sua autoria: bastava avistar uma pequena multidão de telemóvel ou máquina fotográfica na mão.

No museu a céu aberto da cidade de Nova Iorque, conseguiu colocar toda a gente a falar dele. A sua fama precede-o. Para além de obras efémeras espalhadas pelo mundo criadas ao longo dos últimos 15 anos, tem também lugar em galerias e museus. Até o vereador Peter Vallone Jr, um conhecido activista anti-graffiti, criticou as acções contra Banksy perpetradas pelos rivais: “É um vândalo, mas com talento, ao contrário dos outros que mais não fazem do que destruir o que ele faz, tentando ganhar notoriedade à sua custa.” Já o presidente da Câmara, Michael Bloomberg, foi menos tolerante, declarando ao New York Post que “o graffiti estraga a propriedade e é um sinal de decadência e de perda de controlo”. Ainda assim, a tão falada perseguição policial não pareça ter passado de ruído mediático.

Mestre manipulador

O trabalho de Banksy, como dos artistas de rua em geral, é atravessado por conflitos, tangentes e tensões. Hoje as cidades integram inúmeras tendências, das mais gratuitas às mais exigentes em termos de sofisticação artística. Se, por um lado, o graffiti mais errático mantém uma presença inflexível, por outro há cada vez mais artistas com raízes no espaço urbano a transitarem para as galerias. O caso de Banksy tem algumas singularidades. Conquistou galerias e museus e agora regressa à rua, com algumas vozes críticas a questionarem a sua integridade, porque censura o capitalismo, mas integra o sistema especulativo da arte.

Os que estão do seu lado dizem que não é assim. Ele actua a partir dos interstícios do sistema, aproveitando os seus buracos negros, precisamente para denunciar o sistema, transformando-o. O (falso) documentário que realizou em 2010, Exit Through The Gift Shop, acabava por ser uma reflexão sobre essas dinâmicas.

O projecto de Nova Iorque constituiu um gigante acontecimento comunicacional, da cidade para o mundo, via Internet, e depois para a imprensa que nunca mais largou o assunto de vista. O dispositivo era simples. Mas só funciona quando falamos de alguém com grande visibilidade. Na sua conta do Instagram e no sítio oficial da Internet, ia publicando fotos das intervenções, com indicação do local. Pouco tempo depois, o dito local enchia-se de pessoas, as redes sociais ampliavam o acontecimento e as televisões e os jornais de todo o mundo falavam do ocorrido.

O facto de ninguém saber quem é Banksy ajuda a criar um efeito de adesão. Ao longo do mês, várias fotos foram publicadas por indivíduos que juraram tê-lo visto, mas o mistério permanece. Para o artista Miguel Januário, mais conhecido pela designação +MaisMenos-, também ele entre a rua e a galeria (There is nothing money can buy foi a sua última exposição), a “histeria à volta do culto da personalidade misteriosa” contribuiu para que a qualidade dos trabalhos já não seja sequer importante — basta “apenas a sua existência, a sua sombra”.

Alexandre Farto (ou seja, Vhils), o artista de rua português com mais exposição internacional, diz que o fascínio é explicado por esse anonimato, numa época “em que tudo é acessível, em que se sabe de tudo, em que tudo é exposto pelos media e estamos a perder privacidade e liberdades em nome da segurança publica”.

Mas é preciso não esquecer “o conteúdo da obra”, acrescenta, referindo o enquadramento específico no espaço público, “o uso magistral da ironia, o modo como Banksy manipula os signos e os suportes do espaço urbano e, claro, a sua simplicidade formal”.

É isso. Ele é um mestre manipulador. Alguém que sabe fazer uso dos meios certos para comunicar a sua obra. O projecto de Nova Iorque confirmou essa propensão de forma triunfal. “O uso subversivo das reacções públicas e a histeria colectiva que se gerou à volta são, em si mesmos, os pontos mais fortes do projecto”, sublinha Alexandre. “A figura romântica de um vigilante encapuzado, um super-herói que desafia as autoridades em nome da arte popular, fá-lo conquistar quem tem sede do genuíno.”

Apesar das inúmeras narrativas criadas à sua volta pelos media, Banksy resiste a todos os simplismos. Ou como diz Alexandre, “parece ter chegado ao ponto em que manipula a manipulação e subverte a subversão, ao ponto em que deixa de ser possível distinguir o que é ou não genuíno, o que é ou não manipulado ou manipulador”. “À primeira vista”, continua, “pode parecer que as suas ideias se banalizam com esta exposição, mas numa segunda leitura verificamos a subtileza como joga com todos estes elementos”.



Provocações (de parte a parte)

Desde o primeiro dia de Better Out than In que as criações de Banksy foram alvo de retaliações. O primeiro stencil, em Chinatown, que retratava duas crianças a retirarem uma lata de spray de um aviso na parede (no qual se lia a frase o “graffiti é crime”), foi coberto com tinta. Ao lado desse mural existia um número de telefone para o qual se podia ligar, como nos audioguias explicativos dos museus. O mecanismo satírico viria a ser repetido mais vezes, numa duplicidade constante com o universo canónico da arte contemporânea da qual resultaram desenvolvimentos inesperados ao longo do mês.

Numa das acções, Banksy montou uma banca no Central Park com trabalhos originais seus ao preço único de 44 euros — foram vendidos apenas seis. Como é evidente, se os transeuntes soubessem que estavam perante peças originais do artista teriam sido todas vendidas num abrir e fechar de olhos, até porque as suas obras valem somas bastante avultadas em leilões de arte. Uma semana mais tarde, um grupo de amigos colocou à venda, no mesmo local, ao mesmo preço, réplicas das suas peças. Resultado? Os 40 quadros expostos foram vendidos no espaço de uma hora, apesar dos avisos de que eram cópias. “Não teríamos vendido nada se não tivesse havido o alarido à volta da venda da semana passada”, reconheceu David Cicirelli, um dos mentores da ideia.

Outra história inusitada aconteceu em Brooklyn, quando alguns moradores taparam o desenho de um castor na parede com papelão, passando a cobrar 20 euros a quem quisesse tirar uma foto. Argumento utilizado: “Estamos muito zangados porque estas pessoas nunca viriam ao nosso bairro a não ser por Banksy.”

Num editorial de boas-vindas, o New York Times criticou os que tentaram lucrar ou que foram hostis à presença do artista na cidade, embora há dias a relação com o jornal tivesse azedado. Banksy queria ver publicado um artigo em que mostrava desagrado pelo novo World Trade Center, argumentando que não tem dignidade e não é arrojado. O jornal optou pela não-publicação. Banksy inscreveu numa parede a mensagem “este local contém mensagens bloqueadas” e um artigo fictício acabou por ser revelado, no qual se pode ler que “a maior monstruosidade de Nova Iorque não é o graffiti, mas a construção do Ground Zero”. Em simultâneo, um camião de entregas de matadouro, repleto de animais de peluche, foi circulando por vários bairros, e uma estátua gigante de Ronald McDonald, com um miúdo a engraxar-lhe os sapatos, começou a ser vista à hora de almoço em diferentes pontos da cidade. Ou seja, um rodopio diário de iniciativas e provocações e despoletar.

Tudo acções que indiciam que, ao lado de Banksy, opera uma verdadeira equipa. Alexandre Farto já esteve envolvido em projectos com ele e recorda “uma equipa incansável e muito profissional”. Nunca contactou directamente com o inglês, embora tenha recebido “feedback dele de forma indirecta”. Conclui: “Seria impossível o anonimato se não se protegesse.”

Público, privado

Uma das acusações mais vulgares que os artistas de rua ouvem é a de que vandalizam propriedade privada. Os mais esclarecidos defendem-se argumentando que apenas actuam em zonas onde a sua acção não vai gerar contra-indicações, como prédios devolutos ou locais onde já existem inscrições. Os mais politizados alegam que o espaço público está cada vez mais privatizado, com as cidades cheias de signos visuais sobre os quais não há controlo e com o único critério a ser o económico: quem tem dinheiro para pagar pode pôr nas paredes o que quiser. A questão da propriedade privada é muito delicada, porque mexe na medula de um dos alicerces das sociedades contemporâneas — o modo como o ser se confunde com o ter.

“A noção de propriedade privada é clara no que concerne ao que se situa dentro das paredes, mas o espaço visual que se encontra no espaço público já tem uma dimensão pública, mesmo se detido de forma privada. Logo, tem uma componente pública”, defende Alexandre. “Há um ordenamento restrito para a propriedade privada que se encontra virada para o espaço publico. A lei não permite que pinte a minha parede de branco sem pedir autorização às autoridades. Por outro lado, o espaço dito verdadeiramente público é cada vez mais privatizado. Ou seja, é público, mas gerido de forma privada, não acessível a todos.”

E depois existem casos paradoxais como o que fomos encontrar num sábado de manhã, em Tribeca, zona de restaurantes e comércio requintado. Entre as ruas Jay e a Staple, deparámo-nos com uma representação das Torres Gémeas com uma flor descaída. Durante a noite alguém pintou de azul a totalidade da gravura e agora havia quem retirasse essa mesma tinta. O curioso neste caso é que o proprietário do imóvel havia colocado uma folha de acrílico à volta da gravura, precisamente para impedir que alguém agisse sobre a dita. Conclusão: a tinta derramada sobre o stencil podia agora ser retirada. Era o que fazia Rolf Meyer, cercado por curiosos, quando nos aproximámos. “Quem terá feito isto e porquê?”, interrogava-se um casal de turistas. “É perfeita e é um tributo tão bonito à cidade”, diziam, enquanto Rolf Meyer esfregava para extrair a tinta azul. “Faço-o porque as pessoas vêm aqui na expectativa de encontrar qualquer coisa bela, com a qual se possam relacionar, e ver isto coberto parece-me intolerável. Nestes casos fazia todo o sentido existir legislação que protegesse e preservasse esta arte, desde que lhe fosse reconhecida qualidade e interesse público.” A ouvir a conversa está Anne Pointer, que concorda, embora reflicta que isso colocaria mais uma série de interrogações, porque na génese da arte de rua está a sua efemeridade e o carácter contingente. “É verdade”, concorda Meyer, “mas devitava-se este tipo de retaliações ou então, ainda pior, que as peças fossem retiradas das paredes para depois serem vendidas a preços exorbitantes”.

A atracção da rua

Poucas horas depois, do outro lado rio Hudson, em Brooklyn, na esquina da King com a Van Hunt, deparamos com uma das peças mais icónicas de toda a operação: um balão em forma de coração, agora já alterado em relação à sua configuração inicial. Ao seu lado está um individuo de fato-macaco amarelado. Diz chamar-se Perry Levy e identifica-se, rindo, como pertencendo à “Sociedade de Restauro de Banksy”: “É uma sociedade com um só membro: eu.”

Perguntamos no que consiste a sua actividade: “Todos os dias visito o maior número possível de obras e vou restaurando o que posso, por causa das agressões.” Revela que as hostilidades têm sido reprimidas pela população. E dá o exemplo da senhoria de um prédio em Brooklyn que contratou seguranças e instalou uma grade de metal para proteger uma das peças.

Onde não existiu espaço para investidas hostis foi em Chelsea, por debaixo da High Line, em plena zona de galerias de arte, onde Banksy criou uma espécie de “galeria” ao ar livre, com direito a seguranças, para expor dois quadros feitos em colaboração com a dupla brasileira Os Gémeos. Uma multidão aglomerava-se nas imediações, enquanto ao lado uma magnífica exposição de Sophie Calle estava vazia. Mais uma vez, o dispositivo era irónico, com bancos dispostos em frente aos quadros, e seguranças que se comportavam como se estivessem num museu, impondo regras.

Se a ideia de Banksy em Nova Iorque era mostrar que a interacção entre o ambiente urbano e os artistas que olham para a cidade como uma tela gigante cativa cada vez mais a imaginação, pode dizer-se que conseguiu. O apelo primordial da rua mantém-se, mesmo se a arte urbana se introduziu nas plataformas da arte contemporânea. “Ele revela um posicionamento crítico em relação a esse contexto”, analisa Miguel Januário, “mas também utiliza esse registo a seu favor, consciente de que a sua projecção vive também do facto de pertencer a esse mundo especulativo que é o da arte contemporânea, o mesmo que lhe permitiu ter recursos para elevar as intervenções a este nível de investimento”.

Para estes artistas a rua oferece possibilidades difíceis de encontrar num espaço expositivo fechado. “Tem uma natureza específica, uma vitalidade que não encontramos noutros meios”, reflecte Alexandre. “É inebriante. Para alguém que começou na rua, essa atracção não se perde. Ao mesmo tempo, a natureza subversiva da obra dele encontra na rua o ambiente perfeito.”

Mas não é apenas o espaço onde a arte deve figurar que é problematizado. São também os mecanismos de legitimação — quem dita o que deve ou não ser aceite para ser exposto — e o mercado. “Na sua acção há também uma problematização do mercado da arte, do valor económico da arte face ao seu interesse estético ou histórico, com base no ponto de que, à partida, o que se faz no espaço público de forma ilegal e efémera devia ser um acto puro, não capitalizável.” Na visão de Alexandre Farto, este tipo de movimento artístico não discrimina entre o espaço interior e exterior e não depende da galeria para o seu impacto. “Ou seja, subverte à partida o espaço sagrado da arte contemporânea ligada como está ao mercado do capital. Faz uso dele, mas não depende dele.”

De regresso a Manatthan, na esquina da 7ª Avenida com a Cooper Square, a figura de um padre foi incrustada num muro móvel, numa área de construção, como se fosse um confessionário. É quase noite quando descobrimos a peça de Banksy. Desta vez não há nenhuma multidão. Apenas duas bicicletas junto ao muro e um homem encostado a uma parede em frente. Sorrimos-lhe, esperando alguma cumplicidade; nenhuma reacção. Tem a cabeça ligeiramente inclinada, encoberta por um capuz de camisola desportiva e não é possível vislumbrar-lhe o rosto. Por momentos entregamo-nos à fantasia. Podia ser Banksy.