Abrir a porta do atelier e entrar
No restaurante do algarvio Murta é simplesmente o sr. Rodrigues, cliente habitual recebido de braços abertos e com sugestões na ponta da língua. “Temos o seu filete de sardinha para entrada”, diz-lhe a empregada meio ucraniana meio portuguesa antes mesmo que pergunte. Sabem o que vai beber e como gosta que o peixe venha para a mesa. José Manuel Rodrigues não vive em Sines, mas às vezes parece. Minutos antes tinha parado numa banca de rua com legumes e amoras e a vendedora já o esperava, de sorriso tímido e vários quilos de tomate dentro dos sacos. “São os melhores que já comi este ano”, diz José M. Rodrigues. Na sua casa junto à Graça do Divor, em Évora, a horta dá muita coisa (apesar dos ratos cegos que destroem árvores e cultivo), mas não chega para tudo. “Não sou lá muito bom a trabalhar a terra”, diz o fotógrafo que agora reúne no Centro de Artes de Sines 60 trabalhos que reflectem muitos dos seus temas de sempre: as mulheres, o corpo, a água.
Improvisos foi uma espécie de corrida contra o tempo, ingrediente que podemos encontrar em muitas das fotografias e peças expostas. Foi preparada num mês e meio e montada em duas semanas, graças à pequena equipa que juntou no centro de artes. Percorrê-la é como folhear um catálogo dedicado à sua obra, sobretudo a mais experimental, desde o início da década de 1970 até hoje, fazendo uma paragem mais demorada nos anos 80. É nessa altura que, a viver na Holanda, José M. Rodrigues (n. 1951) começa a interessar-se “por tudo”, em especial pelo cinema e pelas artes performativas, que no centro da Europa, mais do que nas periferias, arriscavam muito.
O corpo torna-se, então, quase omnipresente e aquilo que fotografa parte muitas vezes de uma esfera de grande intimidade, como se as pessoas e os objectos só valessem a pena se estivessem, de alguma forma, ligados aos afectos, ao que importa guardar. É assim no díptico Évora (1982); em Auto-domínio (1983), uma fotomontagem com espelho; Miami (1996), um retrato da mãe; ou Garvão (1996-2008), uma impressão de grandes dimensões em que a câmara de José M. Rodrigues se voltou para o filho então adolescente, transformando-se no espelho que Narciso encontra na água.
“As minhas fotografias são quase sempre as dos meus lugares e das minhas pessoas, das minhas coisas e memórias.” As memórias que hoje a banalização da imagem espalha por todo o lado, “esbanja”. Elas estão na mala que encontrou numa rua de Lisboa e onde juntou a terra que pediu a vários amigos que trouxessem das suas viagens, poemas manuscritos e fotografias de família compradas na Feira da Ladra (Terra, 1985/2005); mas também no objecto que criou a partir de pequenas caixas de botões (Confrontação, 1986); na moldura barroca que escolheu para a fotografia de Françoise (1972), a primeira que fez a uma pessoa deitada no chão; na instalação Lettera 22, com a máquina de escrever de Ernesto de Sousa, o criador e crítico de arte que o fotógrafo teria gostado de conhecer melhor.
Apesar de Improvisos mostrar várias das séries que marcaram até hoje o seu percurso — das mais próximas da arte conceptual às mais recentes, como a que dedicou, graças a uma encomenda valenciana, ao tempo dos poderosos Bórgia, passando pelas mais contaminadas pela cultura do objecto e pelas linguagens do vídeo e da performance —, José M. Rodrigues garante que não é uma retrospectiva, apenas “uma arrumação mental” do seu trabalho.
Antes de aceitar o convite do director do Centro de Artes de Sines, Carlos Seixas, para ali montar a exposição, o fotógrafo não estava bem certo do que tinha no atelier da sua casa na Graça do Divor, onde cheira a ervas de tempero quando chove. Ficou até surpreendido com o que ali encontrou, cuidadosamente embrulhado e arrumado (é por isso que muitas das provas e muitos dos objectos da exposição são os originais). Escolher o que iria mostrar tornou-se mais fácil quando chegou à conclusão de que o melhor seria encontrar uma série de “âncoras” — fotografias de grande formato capazes de orientar a leitura do espaço, cheio de peculiaridades, a partir dos corredores. “Estas âncoras ajudam também a questionar a fotografia e o seu negativo”, a criar condições para que os pequenos núcleos estabeleçam ligações, por vezes muito subtis.
Sempre o retrato
José M. Rodrigues abandonou a câmara escura por completo no ano passado, mas isso não significa que só fotografe em digital. Foi o digital, lembra, que fez com que começasse a optar pela cor, sem nunca abdicar do registo que lhe é mais natural e que encontramos nas séries de 1970 e 1980, o preto e branco. “Hoje colecciono combinações de cores quando antes juntava grãos de prata”, diz, explicando que continua a reservar para si a tarefa de ampliar os seus trabalhos porque gosta de controlar o processo em todas as suas variantes. Foi o que aconteceu com a série dos Bórgia, em que a fotografia se confunde com a pintura ou simplesmente nos confunde, mostrando o que pode haver de Caravaggio num tronco imenso.
Com a fotografia analógica tudo evoluía mais devagar e era possível criar um método de revelação e de ampliação que tivesse um prazo de validade de décadas (o seu durou quase 40 anos). Na câmara escura, garante, aprendeu a olhar e a pensar, aprendeu o que é o preto e o branco: “Na escuridão tudo é mais intenso do que na câmara clara. Ver nascer a imagem, mesmo que já o tenhamos visto milhares de vezes, parece sempre um milagre.”
É também de intensidade que fala quando se refere ao retrato, género que tem vindo a explorar cada vez mais. Nem sempre quem se dispõe a ser fotografado está consciente do que implica estar perante uma câmara exigente, mas os retratados que podem ver-se em Improvisos — a mulher, os filhos, os vizinhos e os amigos, muitos deles dos tempos em viveu na Holanda — não parecem minimamente incomodados. “Gosto do retrato porque gosto da forma humana, da composição pura e eficiente ligada à emoção.”
Expor em Sines no Verão permite a José M. Rodrigues ir à lota com o mestre Chainho, pescador experiente, atrás dos olhos dos peixes, e conversar com o saxofonista norte-americano David Murray à mesa d’O Galo. No restaurante do algarvio especialista em sardinha de salmoura, a fotografia e o jazz encontram-se. E é surpreendente ver com que entusiasmo um lisboeta que viveu na Holanda quase 25 anos e um californiano que é do mundo podem discutir as autárquicas no Alentejo. Apetece dizer: “Até à próxima, sr. Rodrigues.”
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No restaurante do algarvio Murta é simplesmente o sr. Rodrigues, cliente habitual recebido de braços abertos e com sugestões na ponta da língua. “Temos o seu filete de sardinha para entrada”, diz-lhe a empregada meio ucraniana meio portuguesa antes mesmo que pergunte. Sabem o que vai beber e como gosta que o peixe venha para a mesa. José Manuel Rodrigues não vive em Sines, mas às vezes parece. Minutos antes tinha parado numa banca de rua com legumes e amoras e a vendedora já o esperava, de sorriso tímido e vários quilos de tomate dentro dos sacos. “São os melhores que já comi este ano”, diz José M. Rodrigues. Na sua casa junto à Graça do Divor, em Évora, a horta dá muita coisa (apesar dos ratos cegos que destroem árvores e cultivo), mas não chega para tudo. “Não sou lá muito bom a trabalhar a terra”, diz o fotógrafo que agora reúne no Centro de Artes de Sines 60 trabalhos que reflectem muitos dos seus temas de sempre: as mulheres, o corpo, a água.
Improvisos foi uma espécie de corrida contra o tempo, ingrediente que podemos encontrar em muitas das fotografias e peças expostas. Foi preparada num mês e meio e montada em duas semanas, graças à pequena equipa que juntou no centro de artes. Percorrê-la é como folhear um catálogo dedicado à sua obra, sobretudo a mais experimental, desde o início da década de 1970 até hoje, fazendo uma paragem mais demorada nos anos 80. É nessa altura que, a viver na Holanda, José M. Rodrigues (n. 1951) começa a interessar-se “por tudo”, em especial pelo cinema e pelas artes performativas, que no centro da Europa, mais do que nas periferias, arriscavam muito.
O corpo torna-se, então, quase omnipresente e aquilo que fotografa parte muitas vezes de uma esfera de grande intimidade, como se as pessoas e os objectos só valessem a pena se estivessem, de alguma forma, ligados aos afectos, ao que importa guardar. É assim no díptico Évora (1982); em Auto-domínio (1983), uma fotomontagem com espelho; Miami (1996), um retrato da mãe; ou Garvão (1996-2008), uma impressão de grandes dimensões em que a câmara de José M. Rodrigues se voltou para o filho então adolescente, transformando-se no espelho que Narciso encontra na água.
“As minhas fotografias são quase sempre as dos meus lugares e das minhas pessoas, das minhas coisas e memórias.” As memórias que hoje a banalização da imagem espalha por todo o lado, “esbanja”. Elas estão na mala que encontrou numa rua de Lisboa e onde juntou a terra que pediu a vários amigos que trouxessem das suas viagens, poemas manuscritos e fotografias de família compradas na Feira da Ladra (Terra, 1985/2005); mas também no objecto que criou a partir de pequenas caixas de botões (Confrontação, 1986); na moldura barroca que escolheu para a fotografia de Françoise (1972), a primeira que fez a uma pessoa deitada no chão; na instalação Lettera 22, com a máquina de escrever de Ernesto de Sousa, o criador e crítico de arte que o fotógrafo teria gostado de conhecer melhor.
Apesar de Improvisos mostrar várias das séries que marcaram até hoje o seu percurso — das mais próximas da arte conceptual às mais recentes, como a que dedicou, graças a uma encomenda valenciana, ao tempo dos poderosos Bórgia, passando pelas mais contaminadas pela cultura do objecto e pelas linguagens do vídeo e da performance —, José M. Rodrigues garante que não é uma retrospectiva, apenas “uma arrumação mental” do seu trabalho.
Antes de aceitar o convite do director do Centro de Artes de Sines, Carlos Seixas, para ali montar a exposição, o fotógrafo não estava bem certo do que tinha no atelier da sua casa na Graça do Divor, onde cheira a ervas de tempero quando chove. Ficou até surpreendido com o que ali encontrou, cuidadosamente embrulhado e arrumado (é por isso que muitas das provas e muitos dos objectos da exposição são os originais). Escolher o que iria mostrar tornou-se mais fácil quando chegou à conclusão de que o melhor seria encontrar uma série de “âncoras” — fotografias de grande formato capazes de orientar a leitura do espaço, cheio de peculiaridades, a partir dos corredores. “Estas âncoras ajudam também a questionar a fotografia e o seu negativo”, a criar condições para que os pequenos núcleos estabeleçam ligações, por vezes muito subtis.
Sempre o retrato
José M. Rodrigues abandonou a câmara escura por completo no ano passado, mas isso não significa que só fotografe em digital. Foi o digital, lembra, que fez com que começasse a optar pela cor, sem nunca abdicar do registo que lhe é mais natural e que encontramos nas séries de 1970 e 1980, o preto e branco. “Hoje colecciono combinações de cores quando antes juntava grãos de prata”, diz, explicando que continua a reservar para si a tarefa de ampliar os seus trabalhos porque gosta de controlar o processo em todas as suas variantes. Foi o que aconteceu com a série dos Bórgia, em que a fotografia se confunde com a pintura ou simplesmente nos confunde, mostrando o que pode haver de Caravaggio num tronco imenso.
Com a fotografia analógica tudo evoluía mais devagar e era possível criar um método de revelação e de ampliação que tivesse um prazo de validade de décadas (o seu durou quase 40 anos). Na câmara escura, garante, aprendeu a olhar e a pensar, aprendeu o que é o preto e o branco: “Na escuridão tudo é mais intenso do que na câmara clara. Ver nascer a imagem, mesmo que já o tenhamos visto milhares de vezes, parece sempre um milagre.”
É também de intensidade que fala quando se refere ao retrato, género que tem vindo a explorar cada vez mais. Nem sempre quem se dispõe a ser fotografado está consciente do que implica estar perante uma câmara exigente, mas os retratados que podem ver-se em Improvisos — a mulher, os filhos, os vizinhos e os amigos, muitos deles dos tempos em viveu na Holanda — não parecem minimamente incomodados. “Gosto do retrato porque gosto da forma humana, da composição pura e eficiente ligada à emoção.”
Expor em Sines no Verão permite a José M. Rodrigues ir à lota com o mestre Chainho, pescador experiente, atrás dos olhos dos peixes, e conversar com o saxofonista norte-americano David Murray à mesa d’O Galo. No restaurante do algarvio especialista em sardinha de salmoura, a fotografia e o jazz encontram-se. E é surpreendente ver com que entusiasmo um lisboeta que viveu na Holanda quase 25 anos e um californiano que é do mundo podem discutir as autárquicas no Alentejo. Apetece dizer: “Até à próxima, sr. Rodrigues.”