A sociedade secreta de Sasha Grey
Entrou no universo da indústria porno aos 18 anos, tendo feito quase 300 filmes. Não por necessidade, diz a americana Sasha Grey, 25 anos — por curiosidade. Com o seu rosto de jovem inocente, permitiu-se todas as fantasias durante três anos, propondo caminhos alternativos para o género e transformando-se assim na rainha do porno mais extremo. Em 2009, o realizador Steven Soderbergh convidou-a para protagonizar Confissões de Uma Namorada de Serviço e a sua vida mudou. Participou em vídeos (Marylin Manson, Smashing Pumpkins), formou o seu próprio grupo, aTelecine, colaborou com os Throbbing Gristle, entrou na série de TV Entourage e recentemente filmou com Elijah Wood em Open Windows, de Nacho Vigalondo. É também DJ e fotógrafa, colaborando regularmente com artistas plásticos — o português Julião Sarmento, por exemplo. Acaba de lançar o primeiro livro, Juliette Society, obra sobre sociedades secretas, poder e erotismo em que a personagem Catherine, como ela própria, tenta cumprir as suas fantasias. Falámos com ela em Lisboa.
Tem andado a promover o livro por todo o mundo e nas entrevistas suponho que lhe façam mais perguntas sobre o passado como estrela porno do que como escritora. Convive com isso de forma pacífica?
Sim, porque as duas coisas acabam por estar ligadas. O livro foi escrito por mim e o passado porno faz parte do que sou. Sinto-me agradecida por ter feito porno. Queria explorar os limites do meu corpo e da minha sexualidade e foi a melhor maneira de o fazer. Permitiu-me não ter vergonha das minhas fantasias.
Até que ponto o sucesso do livro erótico As Cinquenta Sombras de Grey, de E.L. James serviu de motivação para a escrita da sua obra?
O meu agente andava a dizer-me há anos que deveria escrever um livro. Depois do êxito de As Cinquenta Sombras de Grey, voltou a insistir dizendo que era o contexto certo, até porque havia pessoas que achavam que eu tinha alguma coisa a ver com o livro, por causa do nome. Acabou por ser motivador, mas desde os primeiros tempos de porno que recebia emails de fãs — daqueles que achavam uma chatice a pornografia porque era uma fórmula da qual sabiam exactamente o que esperar — incentivando-me a escrever. Eram muito protectores porque era nova e havia um sentimento de identificação por viver a minha sexualidade com autenticidade. Por outro lado, comecei a ler recentemente romances eróticos contemporâneos e senti que faltava algo — eram escritos a partir de um prisma romântico, pouco verdadeiro. Eram variações da história da mulher que está à espera de encontrar um homem para a fazer feliz. E tudo isso acabou por me incentivar a escrever sobre uma personagem realista, inquietante por causa das suas fantasias, mas não sexualmente ingénua.
Há excepções — como Anaïs Nin —, mas a maior parte da literatura erótica foi escrita por homens. Diz-se o mesmo da indústria porno. Sente que naquilo que faz há um ponto de vista feminino?
A maior parte das pessoas acha que a indústria porno está modelada a partir do ponto de vista masculino porque não existe muito romance. Esse é o estereótipo. Mas a mim o que me interessou foi provar que as mulheres também podiam ter desejos fortes e fantasias obscuras e não têm de sentir-se envergonhadas por causa disso. Nesse sentido, seja com o porno ou com o livro, acredito que dou voz às mulheres que não receiam ser tão perversas — odeio essa palavra, mas é difícil encontrar outra — como os homens. Cresci num meio católico e quando era mais nova tinha fantasias que não conseguia explicar. Nem sabia de onde vinham. Sentia-me desgostosa comigo própria. Julgava-me e julgava a sexualidade dos outros. A protagonista do livro, Catherine, acaba por passar pelo mesmo ciclo. Mas, a partir de determinada altura, quanto mais fantasia e mais vai aprendendo sobre os diferentes aspectos da sexualidade, mais confortável se vai sentido.
Como é que alguém que cresceu num contexto católico foi lidando com a noção de culpa ao longo da sua carreira de estrela porno?
Foi duro, na adolescência, porque não podia falar sobre as minhas fantasias com ninguém, mas a partir do momento em que tive as primeiras relações sexuais comecei a interrogar-me porque é que haveria de sentir-me suja ou culpada, e aí tudo mudou. Na verdade acabei por ir parar ao porno para aprofundar a minha sexualidade, exercitando as minhas fantasias. O porno deu-me segurança e a partir daí não voltei a sentir vergonha. Mas é evidente que entrar no mundo porno não foi uma decisão leviana. Demorei alguns meses a pensar e a investigar a indústria. Pensei sobre os prós e contras e tive noção dos riscos que iria correr — junto da minha família e da sociedade em geral —, mas decidi assumi-los. E ainda bem, porque essa experiência acabou por ajudar-me a superar velhos sentimentos de culpa ou de vergonha.
Há pouco disse que leu algumas novelas eróticas contemporâneas. Alguns autores clássicos lhe serviram de inspiração?
Sim. As inspirações mais óbvias são talvez 120 dias de Sodoma, de Sade, Thérèse Philosophe, de Jean Baptiste de Boy, e Candide, de Voltaire. Gosto do facto de serem três novelas satíricas, reflectindo os contextos sociais da época, e de se perceber, em parte, que aqueles três homens viveram realmente as suas histórias. O meu livro tenta ir por aí: não é apenas mais uma história de uma rapariga e de um rapaz que se amam e são felizes para sempre. Não é assim a vida real. O meu livro é uma fantasia, mas suportada pela densidade e pela complexidade da vida.
Ao longo do livro vai desfiando imensas referências culturais, alusivas a livros, discos ou filmes. Qual foi o intuito?
Às vezes pode parecer que me estou a armar, mas não se trata disso. São simplesmente coisas que foram estando presentes no processo. Alguns dos filmes de que falo — O Mundo a Seus Pés, Vertigo, Lost Highway ou De Olhos bem Fechados — estiveram sempre presentes porque foram inspiradores do ponto de vista das relações de poder, da fantasia e do sexo. Mas noutros dias, enquanto escrevia, tinha simplesmente a TV ligada e ia vendo coisas sem sentido. Quero apenas partilhar algumas das coisas de que gosto; se despertar curiosidade em que me lê — no sentido de irem procurar mais informação —, ainda mais satisfeita fico.
Tal como o seu livro, também o filme De Olhos bem Abertos, de Kubrick, aborda o tema das sociedades secretas. O que a atrai nesse assunto?
O mistério e a possibilidade de teoricamente nesses contextos se poderem cumprir fantasias que no exterior seriam mais difíceis de satisfazer. Sexo e poder sempre andaram a par e nas situações em que Catherine se envolve ela tem de lidar com essas dinâmicas, questionando quem está a controlar.
Mas nesses contextos o poder — em correlação com o sexo — pode ser também exercido de forma arbitrária, isso não a importuna?
Mais uma vez, ter trabalhado no porno ajudou-me. Não tinha agente no início e desde sempre fui muito independente, tentando encontrar o meu espaço, o que foi difícil — e não é comum — para uma jovem mulher que tem de lidar com complexas relações de poder. Por vezes tratavam-me como se não gostasse do que fazia, ou seja, como se apenas estivesse ali por causa do dinheiro, e atiravam-me isso à cara. Era uma forma de chantagem e um subterfúgio para não me pagarem. Quando o poder se quer impor assim, claro que luto pelos meus direitos.
Há quem sustente que o sexo, sendo uma forma de partilha, pode ser também, paradoxalmente, egoísta, no sentido em que cada um pode estar a satisfazer apenas a sua própria fantasia.
As duas coisas são verdadeiras. É preciso estar atento ao outro. Mas, sim, existe qualquer coisa de egoísta, de primitivo talvez, que deve ser assumido. As mulheres ainda têm de lutar com os seus desejos, especialmente quando são fantasias consideradas sujas ou erradas. Ainda há mulheres designadas como putas apenas porque fazem o mesmo que os homens. Não faz sentido. A partir do momento em que existe alguma forma de entendimento entre as pessoas, tudo é possível.
Todas as obras têm inevitavelmente qualquer coisa de autobiográfico e de ficcional. Os seus fãs vão reconhecê-la no livro?
Sem dúvida que os meus fãs mais fiéis me reconhecerão no livro, a partir de situações onde me viram. Mas a maior parte do que escrevi foi inspirado noutras ficções ou em pessoas com quem falei acerca das suas experiências ou fantasias.
Em todos os projectos em que se envolve — música, fotografia, livros, filmes — há um imaginário misterioso, de sombras, algo obscuro...
Isso provém dos filmes que me inspiraram e da fotografia de que gosto. Mas tem razão, aquilo que me agrada é criar um ambiente. Mesmo na música. É importante que os meus projectos tenham mistério. Não gosto de coisas muito fáceis e óbvias.
No caso da música fez parte, até há pouco tempo, do projecto aTelecine, e colaborou recentemente com membros dos Throbbing Gristle. Nesse contexto é quase a antítese da figura hiper-sexualizada.
Quase não fiz concertos com os aTelecine, mas sim é verdade que — em qualquer circunstância pública — não puxo muito por esse lado sexualizado. Na música, em particular, gosto da sombra, não sou a rapariga que aparece à frente a dar o corpo ao manifesto. Não quero jogar com essa imagem que algumas pessoas possam ter de mim. Enquanto DJ, por exemplo, sou muito tranquila. Aliás, em geral, sou muito calma, o que é estranho quando se está num ambiente de clube, onde toda a gente está numa onda eufórica. Gosto por isso de actuar com uma amiga, Jessica, porque ela tem uma energia diferente. Completamo-nos.
Quando surgiu na indústria porno, esta estava a mudar de modelo económico e em transição para o digital. Dá ideia de que foi uma das primeiras a construir uma base de fãs na Internet. Como se relaciona, hoje, com o que dizem de si?
Sim, nos primeiros anos a Internet foi fundamental, era a partir daí que comunicava directamente com muitas pessoas que me seguiam. Hoje é quase impossível. Com surpresa minha tornei-me conhecida e isso, naturalmente, tanto contribuiu para que existam cada vez mais fãs como também pessoas que me odeiam. Para elas, a Internet é um excelente meio de propagarem o seu ódio. Por isso, hoje, estou atenta ao Instagram, porque gosto do formato dos comentários; o Facebook acho aborrecido e o Twitter é demasiada informação. Enfim, tento acompanhar e por vezes respondo às pessoas que me interpelam. Mas não o posso fazer um a um, seria impossível.
Acabou recentemente um filme com o realizador Nacho Vigalondo. Diz-se que a sua personagem — como já acontecia no filme de Steven Soderbergh — tem pontos de contacto consigo. É verdade?
Sim, até porque trata sobre fama e identidade, coisas das quais estou muito próxima. Foi filmado em Madrid e em Austin, no Texas. É uma espécie de cyber-thriller com muito humor negro, como eu gosto.
Tem também andado a escrever guiões para filmes. Fá-lo porque os papéis femininos são muito estereotipados?
Faço-o porque o cinema americano, em geral, é estereotipado... [risos]. Não vejo por aí muitos filmes interessantes, com um olhar pessoal, capaz de abordar as relações de forma complexa. Sou grande fã de John Cassavetes e não se vêem por aí filmes como os dele. Houve uma altura em que os realizadores independentes conseguiam financiamento, mas hoje é muito difícil encontrar alguém que valorize a arte sem pensar no negócio em primeira instância. Sei que um dos meus filmes verá a luz do dia. Há audiência para eles. Pequena, mas há.
Como descreveria um dia normal para si em Los Angeles?
Quando acordo, tenho de imediato de tomar café. Depois passeio o meu cão — um doberman — porque sei que se não o fizer logo ele vai chatear-me o resto do dia. Depois tento estar com amigos, leio, enfim, parece-me que estou a passar por uma fase onde me sinto a apreciar a vida de uma forma muito mais saudável. Quando me mudei para L.A. tinha 18 anos e concentrava todas as minhas energias na carreira. Sacrifiquei a vida social. Não me arrependo, porque se não também não estaria aqui, mas não quero, daqui a dez anos, olhar para trás e achar que estive numa redoma. Quero desenvolver mais projectos, experimentar diferentes comidas, ouvir música diversa ao vivo, desfrutar da natureza, refrescar-me e reciclar-me.
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Entrou no universo da indústria porno aos 18 anos, tendo feito quase 300 filmes. Não por necessidade, diz a americana Sasha Grey, 25 anos — por curiosidade. Com o seu rosto de jovem inocente, permitiu-se todas as fantasias durante três anos, propondo caminhos alternativos para o género e transformando-se assim na rainha do porno mais extremo. Em 2009, o realizador Steven Soderbergh convidou-a para protagonizar Confissões de Uma Namorada de Serviço e a sua vida mudou. Participou em vídeos (Marylin Manson, Smashing Pumpkins), formou o seu próprio grupo, aTelecine, colaborou com os Throbbing Gristle, entrou na série de TV Entourage e recentemente filmou com Elijah Wood em Open Windows, de Nacho Vigalondo. É também DJ e fotógrafa, colaborando regularmente com artistas plásticos — o português Julião Sarmento, por exemplo. Acaba de lançar o primeiro livro, Juliette Society, obra sobre sociedades secretas, poder e erotismo em que a personagem Catherine, como ela própria, tenta cumprir as suas fantasias. Falámos com ela em Lisboa.
Tem andado a promover o livro por todo o mundo e nas entrevistas suponho que lhe façam mais perguntas sobre o passado como estrela porno do que como escritora. Convive com isso de forma pacífica?
Sim, porque as duas coisas acabam por estar ligadas. O livro foi escrito por mim e o passado porno faz parte do que sou. Sinto-me agradecida por ter feito porno. Queria explorar os limites do meu corpo e da minha sexualidade e foi a melhor maneira de o fazer. Permitiu-me não ter vergonha das minhas fantasias.
Até que ponto o sucesso do livro erótico As Cinquenta Sombras de Grey, de E.L. James serviu de motivação para a escrita da sua obra?
O meu agente andava a dizer-me há anos que deveria escrever um livro. Depois do êxito de As Cinquenta Sombras de Grey, voltou a insistir dizendo que era o contexto certo, até porque havia pessoas que achavam que eu tinha alguma coisa a ver com o livro, por causa do nome. Acabou por ser motivador, mas desde os primeiros tempos de porno que recebia emails de fãs — daqueles que achavam uma chatice a pornografia porque era uma fórmula da qual sabiam exactamente o que esperar — incentivando-me a escrever. Eram muito protectores porque era nova e havia um sentimento de identificação por viver a minha sexualidade com autenticidade. Por outro lado, comecei a ler recentemente romances eróticos contemporâneos e senti que faltava algo — eram escritos a partir de um prisma romântico, pouco verdadeiro. Eram variações da história da mulher que está à espera de encontrar um homem para a fazer feliz. E tudo isso acabou por me incentivar a escrever sobre uma personagem realista, inquietante por causa das suas fantasias, mas não sexualmente ingénua.
Há excepções — como Anaïs Nin —, mas a maior parte da literatura erótica foi escrita por homens. Diz-se o mesmo da indústria porno. Sente que naquilo que faz há um ponto de vista feminino?
A maior parte das pessoas acha que a indústria porno está modelada a partir do ponto de vista masculino porque não existe muito romance. Esse é o estereótipo. Mas a mim o que me interessou foi provar que as mulheres também podiam ter desejos fortes e fantasias obscuras e não têm de sentir-se envergonhadas por causa disso. Nesse sentido, seja com o porno ou com o livro, acredito que dou voz às mulheres que não receiam ser tão perversas — odeio essa palavra, mas é difícil encontrar outra — como os homens. Cresci num meio católico e quando era mais nova tinha fantasias que não conseguia explicar. Nem sabia de onde vinham. Sentia-me desgostosa comigo própria. Julgava-me e julgava a sexualidade dos outros. A protagonista do livro, Catherine, acaba por passar pelo mesmo ciclo. Mas, a partir de determinada altura, quanto mais fantasia e mais vai aprendendo sobre os diferentes aspectos da sexualidade, mais confortável se vai sentido.
Como é que alguém que cresceu num contexto católico foi lidando com a noção de culpa ao longo da sua carreira de estrela porno?
Foi duro, na adolescência, porque não podia falar sobre as minhas fantasias com ninguém, mas a partir do momento em que tive as primeiras relações sexuais comecei a interrogar-me porque é que haveria de sentir-me suja ou culpada, e aí tudo mudou. Na verdade acabei por ir parar ao porno para aprofundar a minha sexualidade, exercitando as minhas fantasias. O porno deu-me segurança e a partir daí não voltei a sentir vergonha. Mas é evidente que entrar no mundo porno não foi uma decisão leviana. Demorei alguns meses a pensar e a investigar a indústria. Pensei sobre os prós e contras e tive noção dos riscos que iria correr — junto da minha família e da sociedade em geral —, mas decidi assumi-los. E ainda bem, porque essa experiência acabou por ajudar-me a superar velhos sentimentos de culpa ou de vergonha.
Há pouco disse que leu algumas novelas eróticas contemporâneas. Alguns autores clássicos lhe serviram de inspiração?
Sim. As inspirações mais óbvias são talvez 120 dias de Sodoma, de Sade, Thérèse Philosophe, de Jean Baptiste de Boy, e Candide, de Voltaire. Gosto do facto de serem três novelas satíricas, reflectindo os contextos sociais da época, e de se perceber, em parte, que aqueles três homens viveram realmente as suas histórias. O meu livro tenta ir por aí: não é apenas mais uma história de uma rapariga e de um rapaz que se amam e são felizes para sempre. Não é assim a vida real. O meu livro é uma fantasia, mas suportada pela densidade e pela complexidade da vida.
Ao longo do livro vai desfiando imensas referências culturais, alusivas a livros, discos ou filmes. Qual foi o intuito?
Às vezes pode parecer que me estou a armar, mas não se trata disso. São simplesmente coisas que foram estando presentes no processo. Alguns dos filmes de que falo — O Mundo a Seus Pés, Vertigo, Lost Highway ou De Olhos bem Fechados — estiveram sempre presentes porque foram inspiradores do ponto de vista das relações de poder, da fantasia e do sexo. Mas noutros dias, enquanto escrevia, tinha simplesmente a TV ligada e ia vendo coisas sem sentido. Quero apenas partilhar algumas das coisas de que gosto; se despertar curiosidade em que me lê — no sentido de irem procurar mais informação —, ainda mais satisfeita fico.
Tal como o seu livro, também o filme De Olhos bem Abertos, de Kubrick, aborda o tema das sociedades secretas. O que a atrai nesse assunto?
O mistério e a possibilidade de teoricamente nesses contextos se poderem cumprir fantasias que no exterior seriam mais difíceis de satisfazer. Sexo e poder sempre andaram a par e nas situações em que Catherine se envolve ela tem de lidar com essas dinâmicas, questionando quem está a controlar.
Mas nesses contextos o poder — em correlação com o sexo — pode ser também exercido de forma arbitrária, isso não a importuna?
Mais uma vez, ter trabalhado no porno ajudou-me. Não tinha agente no início e desde sempre fui muito independente, tentando encontrar o meu espaço, o que foi difícil — e não é comum — para uma jovem mulher que tem de lidar com complexas relações de poder. Por vezes tratavam-me como se não gostasse do que fazia, ou seja, como se apenas estivesse ali por causa do dinheiro, e atiravam-me isso à cara. Era uma forma de chantagem e um subterfúgio para não me pagarem. Quando o poder se quer impor assim, claro que luto pelos meus direitos.
Há quem sustente que o sexo, sendo uma forma de partilha, pode ser também, paradoxalmente, egoísta, no sentido em que cada um pode estar a satisfazer apenas a sua própria fantasia.
As duas coisas são verdadeiras. É preciso estar atento ao outro. Mas, sim, existe qualquer coisa de egoísta, de primitivo talvez, que deve ser assumido. As mulheres ainda têm de lutar com os seus desejos, especialmente quando são fantasias consideradas sujas ou erradas. Ainda há mulheres designadas como putas apenas porque fazem o mesmo que os homens. Não faz sentido. A partir do momento em que existe alguma forma de entendimento entre as pessoas, tudo é possível.
Todas as obras têm inevitavelmente qualquer coisa de autobiográfico e de ficcional. Os seus fãs vão reconhecê-la no livro?
Sem dúvida que os meus fãs mais fiéis me reconhecerão no livro, a partir de situações onde me viram. Mas a maior parte do que escrevi foi inspirado noutras ficções ou em pessoas com quem falei acerca das suas experiências ou fantasias.
Em todos os projectos em que se envolve — música, fotografia, livros, filmes — há um imaginário misterioso, de sombras, algo obscuro...
Isso provém dos filmes que me inspiraram e da fotografia de que gosto. Mas tem razão, aquilo que me agrada é criar um ambiente. Mesmo na música. É importante que os meus projectos tenham mistério. Não gosto de coisas muito fáceis e óbvias.
No caso da música fez parte, até há pouco tempo, do projecto aTelecine, e colaborou recentemente com membros dos Throbbing Gristle. Nesse contexto é quase a antítese da figura hiper-sexualizada.
Quase não fiz concertos com os aTelecine, mas sim é verdade que — em qualquer circunstância pública — não puxo muito por esse lado sexualizado. Na música, em particular, gosto da sombra, não sou a rapariga que aparece à frente a dar o corpo ao manifesto. Não quero jogar com essa imagem que algumas pessoas possam ter de mim. Enquanto DJ, por exemplo, sou muito tranquila. Aliás, em geral, sou muito calma, o que é estranho quando se está num ambiente de clube, onde toda a gente está numa onda eufórica. Gosto por isso de actuar com uma amiga, Jessica, porque ela tem uma energia diferente. Completamo-nos.
Quando surgiu na indústria porno, esta estava a mudar de modelo económico e em transição para o digital. Dá ideia de que foi uma das primeiras a construir uma base de fãs na Internet. Como se relaciona, hoje, com o que dizem de si?
Sim, nos primeiros anos a Internet foi fundamental, era a partir daí que comunicava directamente com muitas pessoas que me seguiam. Hoje é quase impossível. Com surpresa minha tornei-me conhecida e isso, naturalmente, tanto contribuiu para que existam cada vez mais fãs como também pessoas que me odeiam. Para elas, a Internet é um excelente meio de propagarem o seu ódio. Por isso, hoje, estou atenta ao Instagram, porque gosto do formato dos comentários; o Facebook acho aborrecido e o Twitter é demasiada informação. Enfim, tento acompanhar e por vezes respondo às pessoas que me interpelam. Mas não o posso fazer um a um, seria impossível.
Acabou recentemente um filme com o realizador Nacho Vigalondo. Diz-se que a sua personagem — como já acontecia no filme de Steven Soderbergh — tem pontos de contacto consigo. É verdade?
Sim, até porque trata sobre fama e identidade, coisas das quais estou muito próxima. Foi filmado em Madrid e em Austin, no Texas. É uma espécie de cyber-thriller com muito humor negro, como eu gosto.
Tem também andado a escrever guiões para filmes. Fá-lo porque os papéis femininos são muito estereotipados?
Faço-o porque o cinema americano, em geral, é estereotipado... [risos]. Não vejo por aí muitos filmes interessantes, com um olhar pessoal, capaz de abordar as relações de forma complexa. Sou grande fã de John Cassavetes e não se vêem por aí filmes como os dele. Houve uma altura em que os realizadores independentes conseguiam financiamento, mas hoje é muito difícil encontrar alguém que valorize a arte sem pensar no negócio em primeira instância. Sei que um dos meus filmes verá a luz do dia. Há audiência para eles. Pequena, mas há.
Como descreveria um dia normal para si em Los Angeles?
Quando acordo, tenho de imediato de tomar café. Depois passeio o meu cão — um doberman — porque sei que se não o fizer logo ele vai chatear-me o resto do dia. Depois tento estar com amigos, leio, enfim, parece-me que estou a passar por uma fase onde me sinto a apreciar a vida de uma forma muito mais saudável. Quando me mudei para L.A. tinha 18 anos e concentrava todas as minhas energias na carreira. Sacrifiquei a vida social. Não me arrependo, porque se não também não estaria aqui, mas não quero, daqui a dez anos, olhar para trás e achar que estive numa redoma. Quero desenvolver mais projectos, experimentar diferentes comidas, ouvir música diversa ao vivo, desfrutar da natureza, refrescar-me e reciclar-me.