Marvão Pereira: “Oponho-me ao abandono quase total do investimento público nas políticas do betão”

O economista Alfredo Marvão Pereira defende que muitos investimentos foram demonizados.

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Alfredo Marvão Pereira Miguel Manso

É autor do ensaio ‘Os Investimentos Públicos em Portugal’, publicado recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Alfredo Marvão Pereira é professor catedrático no Departamento de Economia do College of William and Mary nos Estados Unidos e defende uma tese que nos dias de hoje está longe de ser consensual. Numa entrevista por escrito ao PÚBLICO, Marvão Pereira diz que Portugal ficou “traumatizado” quando começaram a chegar as facturas das PPP.?

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É autor do ensaio ‘Os Investimentos Públicos em Portugal’, publicado recentemente pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Alfredo Marvão Pereira é professor catedrático no Departamento de Economia do College of William and Mary nos Estados Unidos e defende uma tese que nos dias de hoje está longe de ser consensual. Numa entrevista por escrito ao PÚBLICO, Marvão Pereira diz que Portugal ficou “traumatizado” quando começaram a chegar as facturas das PPP.?

No seu ensaio sobre ‘Os Investimento Públicos em Portugal’ surge, não obstante algumas nuances, como defensor da chamada ‘política do betão’. Não se sente isolado na defesa dessa tese, numa altura em que são poucos os que defendem o investimento em infra-estruturas como motor de crescimento?
Assim parece. Contudo, as nuances que menciona estão muito longe de ser apenas detalhes. Desde logo assumo-me como defensor dos investimentos de iniciativa pública em infra-estruturas no sentido de que a evidência de que disponho me sugere que foram muito importantes nas últimas décadas. Sou também defensor no sentido em que me oponho por razões conceptuais e empíricas ao abandono quase total destes investimentos. Existem, contudo, duas clarificações fundamentais. Primeiro nunca disse que estes investimentos foram o factor mais importante de desenvolvimento em Portugal mas apenas, o que já é muito, um factor muito importante. Segundo, o facto de ter sido um factor importante não significa que não tenha havido enormes problemas nesta matéria no passado. Finalmente, não defendo a continuação indiscriminada de investimentos de iniciativa pública seguindo os padrões do passado, defendo mais, mas sobretudo, melhores investimentos em áreas cuidadosamente identificadas. Se quiser, em última análise, o que me coloca a contracorrente é a minha total oposição a demonizar, e portanto eliminar, os investimentos em infra-estruturas.
 
No seu livro diz que os investimentos em infra-estruturas, mesmo do ponto de vista empírico, são importantes para o emprego, crescimento e como catalisador do investimento privado? Se assim é, e tendo em conta os elevados investimentos já feitos no passado, por que é que a economia portuguesa chegou à situação a que chegou?
A minha evidência empírica assim o diz, que os efeitos dos investimentos de iniciativa pública em infra-estruturas no produto, emprego, e investimento privado foram importantes nas últimas décadas. Repare que é uma evidência empírica publicada em revistas de economia internacionais e portanto sujeita ao crivo do refereeing científico e é evidência que tendo sido contestada em Portugal não foi ainda refutada. Aliás, tenho dificuldade em perceber que alguém, e muito mais economistas, digam que estes investimentos não foram importantes. O debate teria de ser não se eles foram importantes mas sim se esta foi a melhor estratégia ou se se poderia ter feito melhor nesta e noutras áreas com os recursos que dispúnhamos. Dito isto também temos de perceber que por definição os efeitos destes investimentos são efeitos de longo prazo e portanto difíceis de contrabalançar com a evidência estatística de curto e médio prazo tão contaminada por efeitos de ciclo e por choques idiossincráticos. O que os meus estudos sugerem, e o que defendo, isso sim, é que a economia portuguesa teria chegado ao que chegou bem antes se não tivessem sido estes investimentos. Ponha a coisa de outro modo. Acha que do ponto de vista da base económica do país estaríamos melhor hoje sem estes investimentos?

Muitas dessas infra-estruturas deram hoje origem aos chamados monopólios naturais, de empresas que actuam em sectores não concorrenciais. Não se deveria ter apostado/privilegiado desde o início nos chamados sectores de bens transaccionáveis?
O mais possível. Um dos pontos que já andava a fazer há muito tempo, mesmo quando estudei em detalhe os efeitos dos dois primeiros quadros comunitários de apoio, foi a questão de que toda a estratégia subjacente iria tender a aumentar os custos dos não transaccionáveis e por essa via de arrasto, um aumento dos custos do trabalho na economia no geral e portanto nos transaccionáveis. Por isso, e para evitar que a convergência aos padrões da UE se fizesse à custa de perca de competitividade externa, ter-se-ia de dar grande atenção aos transaccionáveis. Tal não aconteceu e a convergência acabou por se reflectir muito mais em padrões crescentes de consumo privado e público com uma base produtiva decrescente. O resultado está à vista. A questão do meu ponto de vista transcende em muito a problemática dos investimentos de iniciativa pública em infra-estruturas.
 
Por que é que acha que na sociedade portuguesa os investimentos públicos, a chamada ‘política do betão’, são hoje quase um tema tabu? Poucos parecem acreditar que os gastos públicos são o motor para a saída da crise?
Acho que era inevitável, mesmo previsível, dada a situação económica do país e a natureza do sistema político. Os investimentos públicos em infra-estruturas têm sido um bode expiatório fácil no debate político. Porquê? É uma questão de economia política. Este é um tipo de despesa cujos efeitos positivos são muito difusos na sociedade e de efeitos mais de longo prazo. Por seu lado, os efeitos “negativos”, isto é, os custos associados são de percepção muito mais imediata e directa. Assim, um governo ao introduzir um novo programa de investimento irá induzir num futuro bem longe do seu horizonte eleitoral benefícios para a sociedade no geral mas os custos associados fazem-se sentir de imediato. O inverso é ainda mais verdade. Ao eliminar estes investimentos elimina-se um custo de percepção imediata e um benefício difuso de percepção futura. Se confrontar qualquer governo com a escolha entre reduzir investimento deste tipo ou qualquer outro tipo de despesa pública, pense salários ou despesas correntes, o que acha que um político “racional” fará? Pedir mais infra-estruturas? Numa situação de aperto orçamental em que os existe a possibilidade real do eleitor vir e perder muitos dos “direitos adquiridos” como, o que acha que fará um eleitor “racional”? Pedir mais infra-estruturas? É compreensível que não. O meu ponto de vista no geral é que, sobretudo quem anda na política, precisa ter uma visão menos estreita das coisas. Acho um grande erro estratégico demonizar estes investimentos e como consequência abandoná-los. O ponto a que se chegou no debate carece de fundamento conceptual e empírico e está totalmente dominado por preconceitos e não por conceitos. O estado a que se chegou é do meu ponto de vista fruto da expediência política mais ainda que dos disparates feitos nesta área. Claro que o desperdício e os disparates feitos facilitam a demonização. Mas penso que se estaria no mesmo ponto do debate mesmo que os investimentos tivessem sido imaculados.

É um keynesiano, na acepção de defender os gastos públicos como forma de aumentar a procura e o produto?
Já me chamaram muitas coisas mas esta ainda não. Mais a sério, eu considero-me acima de tudo um pragmático. A minha formação é mais neoclássica e esse é o meu ponto de partida natural. O poder dos mercados é o meu ponto de partida. Mas acredito também numa função do Estado que vai para além do dogma minimalista. Acima de tudo procuro ver na evidência empírica qual é o modelo conceptual que melhor se coaduna com a realidade do país. No caso de Portugal, e em termos das questões que coloca, a minha evidência empírica diz-me que despesas em consumo público intermediário e em salários não são instrumentos efectivos em aumentar a procura e o produto, que transferências correntes têm efeito positivo mas ainda assim limitado e no curto prazo, investimentos públicos tradicionais em equipamento e estruturas públicas têm também efeitos positivos mas limitados e mais de longo prazo. O único tipo de despesa pública que parece ter tido efeitos positivos e substanciais – ainda que mais de longo prazo – é o investimento em infra-estruturas.

Diz que “os cortes de investimento em infra-estruturas são perniciosos para a economia” e até para a consolidação orçamental. Será que Portugal ainda precisa de mais infra-estruturas (estradas, hospitais, energia, etc..)? E onde é que se vai buscar dinheiro para as fazer, visto que a prioridade dos dinheiros do QREN nesta altura é outra?
Que os cortes profundos nos investimentos em infra-estruturas são perniciosos para a economia no longo prazo não tenho a menor dúvida. A questão dos efeitos orçamentais é muito mais subtil e aí tenho menos certezas. Penso que de facto os investimentos efectuados nos anos 1980 e 1990, no seu cômputo geral, terão tido um efeito em última análise positivo para o orçamento através do aumento das bases fiscais e das receitas fiscais desse modo induzidas. Estou de momento a actualizar todas estas estimativas, incluindo informação mais recente da última década, e a evidência preliminar é que os efeitos económicos terão sido fortes mas não o suficiente para induzir um benefício orçamental liquido. A questão dos efeitos orçamentais para mim está em aberto. Quanto a se Portugal precisa de mais infra-estruturas a resposta é que sim mas com muito mais cuidado do que no passado e com enfoques e objectivos muito específicos. Por exemplo, uma ideia que me parece muito promissora é a da expansão do porto de contentores de Sines e da sua ligação por via ferroviária em bitola europeia ao resto do país e ao resto da Europa. Claro que isto também depende de decisões de terceiros, nomeadamente em termos da expansão do Canal do Panamá para permitir navios de contentores de maior calibre. Fica apenas como exemplo. Projectos deste tipo, que tem um potencial enorme para o país, não podem ser ignorados. Fundos nacionais, empréstimos, fundos comunitários e parcerias poderão ser usados como apropriado mas se esta é uma ideia consubstanciada por estudos de viabilidade e análise custo-benefício, etc., seria de avançar.

Como se pode apostar em projectos de infra-estruturais (e que projectos?) que gerem efectivo retorno para a economia a médio\longo prazo?
O processo tem de ser a três tempos. Primeiro, identificar oportunidades que ajudem a economia em particular no que respeita aos bens transaccionáveis. Segundo, identificar as áreas de investimento em infra-estruturas mais carenciadas através de estudos macroeconómicos. Terceiro, efectuar estudos de análise de custos-benefícios, sérios e detalhados, para permitir identificar as melhores alternativas em termos dos detalhes dos projectos e da sua implementação, nomeadamente financiamento. Não se pode insistir nas áreas de investimento que já foram anteriormente exploradas, como as auto-estradas. Não se pode nunca insistir em projectos que uma simples análise de custo-benefício sugeria não serem rentáveis como era o caso da rede de alta velocidade.

Defende que Portugal cumpre com a chamada ‘regra de ouro das finanças públicas’, ou seja, nos últimos 30 anos o défice público foi, em média, 5,5% do PIB. E os investimentos públicos representaram 4% do PIB. O cumprimento dessa regra é suficiente para justificar a bondade dos grandes investimentos que foram feitos no passado?
De modo algum. O único ponto que daqui se deriva é que, ao olharmos para os números na sua globalidade, dificilmente se poderia dizer – como por vezes se diz e muitas vezes se pensa – que os défices públicos se devem a estes investimentos. Não só não se devem, mas um raciocínio simples de finanças públicas sugere que uma boa parte dos nossos défices públicos poderá ter tido natureza virtuosa. Pedir emprestado para investir não é o mesmo que pedir emprestado para consumir. Mas esta é uma questão de longo alcance por outras razões. A questão da regra dos 3% do défice na zona Euro tem desde o seu início padecido de um grande problema. Do mesmo modo que sofre a discussão da introdução de uma regra constitucional em Portugal que mandate défices públicos a zero ou quase. A questão mais uma vez é que pedir emprestado para investir não é necessariamente mau, enquanto pedir emprestado para consumir bens não duradouros é raramente bom. A regra que faria sentido seria o requisito de um orçamento equilibrado mas líquido das despesas de investimento público produtivo. Uma regra difícil de implementar certamente, mas que reconhece no caos da União Monetária que nem todos os défices de 3% significam o mesmo, e que no caso de Portugal teriam evitado a desorçamentação destas despesas.

Segundo os dados que está a recolher para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, nos últimos 30 anos, o investimento total em infra-estruturas correspondeu a 4% do PIB? Esta política foi a principal responsável por Portugal se ter aproximado da média europeia (a nossa riqueza era 55,9% da média da UE-15 em 1980 e hoje é de 68,4%)?
Não sei se foi a principal responsável. Sei, isso sim, que foi muito importante. Aliás, dado que uma boa parte desses 4% do PIB veio na forma de transferências unilaterais da UE dificilmente poderia ser de outro modo. No geral este progresso está indiscutivelmente ligado à adesão à UE e à abertura dos mercados que daí advieram, bem como os fundos estruturais que recebemos. A minha sensação foi que esta foi uma oportunidade que podíamos ter aproveitado bem melhor. Mas essa é outra conversa.