O escrivão 427

"The Stanley Parable" é brilhante. É irrelevante que o seja enquanto videojogo, porque é um produto brilhante da imaginação humana

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Quando olha para o chão, Stanley, o empregado nº 427 de um escritório, não vê os pés. Esta é uma convenção usual dos jogos “na primeira pessoa”, em que se assume a perspectiva do protagonista. Por isso, aquela constatação intrigante levou o personagem principal do videojogo "The Stanley Parable" a admitir, por um momento, a hipótese absurda de ser personagem de um videojogo.

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Quando olha para o chão, Stanley, o empregado nº 427 de um escritório, não vê os pés. Esta é uma convenção usual dos jogos “na primeira pessoa”, em que se assume a perspectiva do protagonista. Por isso, aquela constatação intrigante levou o personagem principal do videojogo "The Stanley Parable" a admitir, por um momento, a hipótese absurda de ser personagem de um videojogo.

De vez em quando, os videojogos interrogam explicitamente convenções como esta. Em "Psychosomnium" de Jonatan Söderström, por exemplo, um personagem não compreende por que raio lhe aparecem no caminho armadilhas mortais de espigões, típicas dos jogos de plataforma. O developer americano Davey Wreden quis precisamente que este questionamento dos clichés dos videojogos fosse a experiência central de "The Stanley Parable".

Stanley acata sempre as ordens que recebe no monitor do computador para carregar em teclas. Um dia, deixando de as receber, decide procurar explicação, mas encontra os escritórios tão vazios quanto a sua própria existência. As escolhas dele - prosseguir por uma de duas portas, em geral - são antecipadas pela voz do narrador, o outro protagonista de "The Stanley Parable".

Com ele, obedecemos ao narrador, seguindo-lhe a narração, ou decidimos desobedecer, tornando Stanley numa espécie de actualização do escrivão Bartleby. Em resultado destas opções, obtemos um dos múltiplos finais do jogo e retomamo-lo do início, à procura de um novo final. Como em "Groundhog Day", temos a sensação de vivermos um mesmo dia sucessivas vezes. É famosa, no filme, uma sequência com Bill Murray em várias tentativas frustradas de suicídio que se assemelha, em "The Stanley Parable", à sucessão de saltos de uma escadaria de vários metros a que somos obrigados - e vamos sobrevivendo, por milagre da física dos videojogos - para completarmos um “final” e recomeçarmos. A mecânica repetitiva de "The Stanley Parable" enfatiza ali o tédio e a alienação da anonimização e da mecanização dos processos e relações de trabalho modernos.

Tendo começado como “modificação” (ou “mod”) de "Half-Life 2", convertendo-o num novo jogo, "The Stanley Parable" mina as convenções dos videojogos por dentro de um dos seus maiores cânones. A “demo” do jogo - gratuita na loja Steam - é, ela mesma, uma brilhante paródia às amostras dos videojogos; meta-demo que frustra o jogador “à procura da demo”. Numa área do jogo, temos acesso aos “props” de "The Stanley Parable" em exposição, acompanhados de legendas detalhadas e textos contextualizadores - ao jogo a desmontar-se a ele próprio, ao mesmo tempo que consuma, com ironia, as reivindicações actuais para se exporem videojogos nos museus (como já se vira, também, nos créditos finais de "Thirty Flights of Loving" de Brendon Chung).

"The Stanley Parable" é raro, porventura apenas classificável “numa escala de Max Ernst a Salvador Dali”, como se propõe num dos documentos fictícios exibidos nessa exposição. Na crítica de videojogos, existe uma demanda obsessiva de anos que consiste em procurar uma miragem, o “Citizen Kane” dos jogos, e poderá distrair de uma descoberta mais importante: os videojogos encontraram o seu “The Stanley Parable”. Têm um mundo a seus pés, ainda que não consigam vê-los.