Um país que vive com a saudade

É uma característica nossa. E faz de nós uma gente forte, sentimental, e com qualquer coisa a mais para dar. E se saudade é "the love that remains after someone is gone", o importante é manter esse alguém connosco

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Miro Kuzmanovic/Reuters

A palavra saudade só existe em português. Noutras línguas, "te echo de menos", "I miss you", "tu me manques" são expressões equivalentes ao "tenho saudades tuas" que usamos por cá. No entanto, são expressões que remetem para o "sinto a tua falta".

A verdade faz-nos mais fortes

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A palavra saudade só existe em português. Noutras línguas, "te echo de menos", "I miss you", "tu me manques" são expressões equivalentes ao "tenho saudades tuas" que usamos por cá. No entanto, são expressões que remetem para o "sinto a tua falta".

Comecemos pelas palavras: "sentir falta de" reenvia-nos para uma dimensão exterior a nós que nos faz pensar na existência de qualquer coisa — e entendamos por coisa pessoas, objectos, animais, imagens, sons, cheiros, qualquer coisa mesmo — que não temos em nossa posse no momento. Quando referimos sentir falta de algo, é porque tornamos consciente a ideia de que há qualquer coisa que já tivemos connosco e que deixámos de ter. Sejam dez anos, sejam dez minutos. É o momento em que percebemos que aquela coisa, a tal coisa, nos faz falta.

Mas isso não nos leva para o mundo dos sentimentos por si mesmo. Leva-nos dadas as consequências que daí surgem. Excepto no português. Neste país tão pequeno e periférico, o "sentir a falta de" alguma coisa é automaticamente adicionado à consequência que é o tom fatalista e o infeliz conhecimento de que a coisa pode não voltar: saudade. As expressões estrangeiras que referi anteriormente não o fazem, simplesmente inserem comunicacionalmente a ideia de que há qualquer coisa que está não mais presente.

Li algures que "It was once described as 'the love that remains after someone is gone'". Será que a expressão "I miss my old car" tem alguma relação com um amor que permanece após a partida de alguém? Parece-me imbecil a relação. O "sentir falta" é tão mais geral e tão menos puro. Daí que eu proponha a existência de sentimento não na expressão mas sim nos consequentes. Excepto no português que contém toda esta mística numa só palavra. "Sentir a falta de" é uma expressão que, arrisco dizer, não está no âmbito do sentimento. É algo que se torna percebido em determinada circunstância. Como quando se sente uma gota de água a cair sobre a cabeça. Apercebemo-nos dela, mas sentimento é o que surge como consequência: irritação, raiva, prazer...

Eu sinto-me à frente de outros quando posso afirmar que saudade, como em português se fala, é um sentimento em si. Eu julgo ser parte de um povo que transformou um efeito num sentimento. Porque saudade é efeito de sentir falta de algo. Mas não como consequência posterior no tempo, acontece no imediato, no instante. E sentir a falta de alguma coisa não é um sentimento em si.

Então, nós que recebemos o "sinto a tua falta" misturado com um "tenho saudades tuas" no mesmo espaço de tempo, não sofremos mais do que aqueles que recebem apenas um "sinto a tua falta" — "I miss you", "te echo de menos", "tu me manques" — e apenas posteriormente convertem isso num sentimento que, cá, é a saudade instantânea? Arrisco dizer que sim. Mas somos mais fortes também, pois aprendemos a lidar com esta experiência "assim".

É uma característica nossa. E faz de nós uma gente forte, sentimental, e com qualquer coisa a mais para dar. E se saudade é "the love that remains after someone is gone", o importante é manter esse alguém connosco. Porque o amor há-de permanecer, mas mais fácil é quando o podemos partilhar.