O moralista pós-moderno
Uma colecção de ensaios que resume perfeitamente a técnica e o espírito de David Foster Wallace, inquieta personagem simultaneamente tão imersa no seu tempo e tão alienada.
David Foster Wallace escreveu praticamente acerca de tudo, inclusive sobre outros escritores como Bret Easton Ellis e McInerney, Kafka e Dostoiévski. Numa carta dirigida ao seu miglior fabro, Don DeLillo, ("o melhor criador”, na senda de Dante, Petrarca e Eliot, que assim apelidou Yeats na dedicatória de Terra Desolada) citada por um jornalista da New Yorker, descreveu John Updike - o “ mais autocomplacente cronista da geração mais egoísta desde o tempo de Luís IV” - como alguém que “se dirigia aos ouvidos do leitor como um caloiro mergulha no soutien de uma pobre miúda”, uma frase que contém todos os ingredientes da prosa que se cola à sua própria escrita, atravessada fulgurantemente por uma desesperada excitação. Da cultura pop ao classicismo, do camp ao consumismo, da cultura televisiva - “tal” e reality shows, publicidade e informação - à política em directo, do cinema à filosofia, do 11 de Setembro à indústria da pornografia (como em O Grande Filho Vermelho), do sexo na era da sida ao desporto, Foster Wallace derrama impulsivamente uma mistura explosiva de sarcasmo e humildade, desejo e repulsa, humilhação e exaltação que fez dele, principalmente a título póstumo, um dos poucos autores contemporâneos a conseguir tornar-se verdadeiramente num ícone e numa referência.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
David Foster Wallace escreveu praticamente acerca de tudo, inclusive sobre outros escritores como Bret Easton Ellis e McInerney, Kafka e Dostoiévski. Numa carta dirigida ao seu miglior fabro, Don DeLillo, ("o melhor criador”, na senda de Dante, Petrarca e Eliot, que assim apelidou Yeats na dedicatória de Terra Desolada) citada por um jornalista da New Yorker, descreveu John Updike - o “ mais autocomplacente cronista da geração mais egoísta desde o tempo de Luís IV” - como alguém que “se dirigia aos ouvidos do leitor como um caloiro mergulha no soutien de uma pobre miúda”, uma frase que contém todos os ingredientes da prosa que se cola à sua própria escrita, atravessada fulgurantemente por uma desesperada excitação. Da cultura pop ao classicismo, do camp ao consumismo, da cultura televisiva - “tal” e reality shows, publicidade e informação - à política em directo, do cinema à filosofia, do 11 de Setembro à indústria da pornografia (como em O Grande Filho Vermelho), do sexo na era da sida ao desporto, Foster Wallace derrama impulsivamente uma mistura explosiva de sarcasmo e humildade, desejo e repulsa, humilhação e exaltação que fez dele, principalmente a título póstumo, um dos poucos autores contemporâneos a conseguir tornar-se verdadeiramente num ícone e numa referência.
Uma Coisa Supostamente Divertida que Nunca Mais Vou Fazer, o texto que fornece o título a esta colecção de ensaios - nove, no total, publicados entre 1993 e 2009 em várias revistas americanas - é um exemplo perfeito da sua técnica e do seu espírito. Contratado para escrever uma peça sobre um cruzeiro de luxo nas Bahamas - símbolo do hedonismo desenfreado ligado estreitamente ao verbo “mimar” que, como enfatiza o autor, constitui o refrão dos promotores e directores do navio, ironicamente chamado Nadir -, Wallace acaba por falar incessantemente da morte em todas as suas declinações, presente na claustrofóbica intimidade forçada entre tantos seres estranhos, num mar vasto e terrífico, e, como uma sombra funesta, na assídua repetição do excesso e no tédio daí decorrente.
Em David Lynch não perde a cabeça, um dos textos mais bem conseguidos desta edição, o escritor discorre sobre os métodos de fazer cinema e os hábitos pessoais do realizador. Embora se mantenha a uma distância razoável do criador de Veludo Azul - não tão longe que não dê para observar o hábito de Lynch urinar contra a árvore mais próxima do set, para não perder tempo enquanto filma -, a verdade é que a mão lhe foge para a confissão descarada, uma vez que acaba por fazer do objecto do seu estudo uma espécie de doppelgänger de si próprio, fantasmagórico e travesso, “o género de crianças brilhantes que vemos às vezes e que se mostram engenhosas a estruturar fantasias e se envolvem completamente nelas, mas que só deixam os outros miúdos participarem se tiverem o controlo total” (p. 214). Aqui, a questão do processo criativo e da condição do artista é exemplificada através do método de construção de uma narrativa sinuosamente delineada por caminhos tortuosos comuns ao realizador e ao escritor, ao fazedor de imagens e ao escultor de palavras. Em Pensem na Lagosta, a propósito do “festival” deste animal nas alegres costas do Maine, o autor mostra-se seriamente preocupado com a questão ética colocada pelo tratamento dado ao crustáceo - enfiado vivo numa panela com água a ferver - apenas para servir o prazer consumista de uns tantos devoradores que pouco se importam com o sofrimento de um animal indefeso e se refastelam com alarve voracidade. Pankaj Mishra, na recensão do New York Review of Books, apelidou Wallace desdenhosamente de “moralista pós-moderno”, uma categorização a que não está alheio o facto de o autor ter defendido com unhas e dentes o senador republicano McCain pela sua “integridade e registo militar exemplar”.
No seu conjunto, estes textos, classificados como trabalhos ensaísticos e de reportagem, não são isentos de lacunas e de arrojadas platitudes, embora a verve do autor proporcione uma leitura estimulante e divertida. O raciocínio de Foster Wallace desenvolve-se numa espécie de “curva sinusoidal” com vibrações variáveis, excêntricas, delirantes, carregadas de notas de rodapé e “piadas privadas”, mas sempre intrigantes. A título de exemplo, E Unibus Plurum, a peça sobre a apropriação, por parte dos conteúdos televisivos, da “ironia rebelde” - que ele considera apanágio dos primeiros escritores pós-modernos (Thomas Pynchon, Donald Barthelme, William Gaddis e John Barth) e que deixou as gerações posteriores de autores esvaziados da responsabilidade moral -, contém ideias já batidas sobre a moldura televisiva e o processo de criação/imitação (quantos filósofos da linguagem, de Umberto Eco a Noam Chomsky não esmiuçaram, até ao osso, a estupidificação da mente em perpétuo divertimento?), numa amálgama de clichés que seriam redundantes não fosse a agilidade de ilusionista que Wallace confere às suas ideias, servidas por um autêntico banquete linguístico.
Com uma energia intelectual invejável, Foster Wallace manteve uma luta titânica - e evidentemente perdida - com a ponderosa “baleia branca” que ele provavelmente revia no mito urbano da construção do Grande Romance Americano, uma façanha que a sua mente brilhante perseguiu para lá de todos os limites. Na realidade, apenas a morte e a literatura interessavam a este construtor da linguagem - a sua maior paixão -, a esta inquieta personagem tão profundamente imersa no espírito do seu tempo e simultaneamente tão alienada. Em Federer: Carne e não só, como o próprio título indica, discorre sobre a força, a agilidade e a suprema elegância do tenista suíço, sobre os seus duelos com os adversários, sobre o ambiente dos torneios, sobre os espectadores, sobre as curvas traçadas no espaço pelas bolas e sobre as condições atmosféricas. Para quem não é um aficionado do desporto, o texto, ostensivamente “jornalístico”, poderia tornar-se entediante. Mas Wallace tem garra e o dom supremo de marcar pontos - “ mover, rodar, devolver e recuperar”, ou seja, lançar, cortar, colar, recuperar, inventar palavras - com o mesmo virtuosismo dos contendores em campo. (O tema é retomado num tom de crítica sarcástica em Como Tracy Austin me Partiu o Coração).
No dia 12 de Setembro de 2008, Foster Wallace enforcou-se no pátio da casa californiana que partilhava com a mulher, a artista Karen L. Green, pondo fim ao sofrimento causado pelo agravamento de um estado depressivo que durava há muito, desde os seus tempos de estudante de Inglês e Filosofia no Amherst College. A sua dança com a morte, repetidamente ensaiada, conheceu diversas etapas, saturadas de angústia, medo e desespero, mas também de uma ironia desbragada, um riso descarado e um empolgamento maníaco que lhe alimentaram o génio e, inevitavelmente, a doença.
O romance The Pale King, deixado inacabado, editado principalmente pela viúva, é sobre o incomensurável tédio da vida quotidiana e sobre as possíveis formas de o ultrapassar. Vale a pena recordar o que Wallace escreveu ao seu amigo Jonathan Franzen, logo após o casamento, sobre os confusos sentimentos de alegria e tristeza que sempre o assolavam: “Fico sentado na garagem com a música aos berros e trabalho um pouco com grande relutância, ambivalência e sofrimento. Sinto-me cansado de mim mesmo, parece-me: cansado dos meus pensamentos, das minhas associações, da sintaxe e de vários hábitos verbais que se revelaram primeiro como descobertas, se desenvolveram como técnica e daí passaram a simples tiques.” Para um escritor como ele, o fim da linha seria sempre este. A “piada infinita”, o riso escarninho de Yorick, deixaram de fazer sentido para ele, tal como tinham deixado de fazer sentido para o seu antecessor, o trágico príncipe da Dinamarca.