Fantasmas e mistérios de um bairro provável

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bruno lisita

“O que é para um homem a vergonha abstracta de um país comparada com a sua vergonha pessoal, as dores silenciosas da sua humilhação?” Quando saiu do Bairro Amélia, Bruno Eugénio, o “filho da Celeste”, achou que seria para sempre. No rádio, passava (ou pelo menos ele acreditava que sim) a Suite Bergamasque, de Debussy, e tudo ia bem com a sua sensação de triunfo. Fora num dia em finais de 1990. Agora, 20 anos depois, recém-separado de Sara e despedido das vendas por Ana Mendes, “grande cabra”, Bruno Eugénio, na sua “apatia” perante o desemprego, volta ao local de partida e experimenta a humilhação do regresso e o confronto com a memória que tentou apagar, nunca alimentando antes as histórias que a mãe lhe contava ao telefone sobre os mortos e desaparecidos da sua infância. “Cresci com a ideia de que só os derrotados, os vagabundos e os infelizes não saíam de lá”, confessa o narrador, uma primeira pessoa íntima a tentar reenquadrar-se social e afectivamente numa paisagem de traços familiares, silhuetas envelhecidas e nem sempre enquadradas. É o arranque de As Primeiras Coisas, estreia de Bruno Viera Amaral (n. 1978) na ficção, com um romance de personagens a consumirem-se numa espécie de inferno dantesco, onde o fogo é alimentado por um claustrofóbico quotidiano de misérias. “O Bairro Amélia arde”, há-de escrever o narrador.

O prólogo serve para essa apresentação pessoal e de intenção narrativa. Dá os pressupostos do que aí vem. Fantasia e realidade coladas num jogo assumido de início, com o nome do autor e do narrador a confundirem-se: Bruno. Bruno será mais uma personagem do grotesco que o bairro encerra, um labirinto narrativo acerca do qual cada habitante deixa uma pista. Fica na margem Sul do Tejo. Um território delimitado, construído à imagem dos bairros populares que no início e em meados dos anos 1970 foram nascendo mais ou menos clandestinamente à sombra de aglomerados de emprego proletário como a Quimigal ou CUF, à custa de gente em fuga da pobreza das aldeias e dos muitos retornados de África. Vale da Amoreira. Seixal. Barreiro. Alhos Vedros. São as referências geográficas deste espaço marginal de poucas possibilidades, construído por Bruno Viera Amaral para desenvolver uma história colectiva que nasce de um dicionário de singularidades.

Deambulando no seu retorno forçado, Bruno Eugénio encontra o fotógrafo Virgílio, autor da sua primeira fotografia em cima do inevitável cavalinho, tinha ele dois anos. Virgílio é o homem que sabe tudo no Bairro Amélia. Bate-lhe à porta de casa quando quase se está a afundar numa depressão, depois de ter sido rejeitado por Carla, a empregada do café por quem morria de desejos. Nesse desespero, rasga uma lista, um inventário de nomes e destinos feito com entusiasmo nas conversas com a mãe. Agora quer saber dos mortos e desaparecidos no bairro durante a sua ausência. Quando lhe bate à porta, Virgílio vem devolver-lhe essa memória. Passagem para uma outra, literária, que o amigo Márcio Serrano lhe avivara: “nenhuma terra é nossa enquanto não enterrarmos lá um morto”. É uma ideia que está no início de Cem Anos de Solidão, referência entre muitas: musicais, gastronómicas, de bola e de política. Um quadro social e sensitivo bem articulado, pontuado de ironia e de amargura, de nostalgia e de inquietante sentido de identificação com o outro, mesmo nas suas opções mais questionáveis.

É um narrador em processo de reconstrução da sua identidade. Diz sobre Virgílio. “É ele quem me guia para o interior dos parêntesis abertos entre o dia e a noite, essa estranha hora suspensa em que os loucos se apaziguam, os homens bebem aguardente em silêncio, as mulheres perto do lume ouvem a respiração contínua dos bicos do fogão, as crianças bocejam o cansaço acumulado do dia, me mostra os locais onde tudo aconteceu…” E, de A a Z, as personagens desfilam, seguindo uma estrutura que se revela muito mais do que um inventário de nomes ou existências. A teia da substância faz-se recorrendo a uma forma que é a grande originalidade deste As Primeiras Coisas. Isso e um enorme sentido de ritmo e de domínio da linguagem. A poética, a popular, o calão, a ginga dos malandros, ou a dos que se acham vítimas de conjuras para explicar o que não conseguem. Quem seguia Bruno Vieira Amaral no blogue Circo da Lama não fica surpreendido. Antes confirma uma vocação. Ela está aqui, na tragédia de Fion, o poeta falhado, e na loucura de Flaviana. Na personagem de Diógenes, que desafiou os maus presságios da vizinha, velha bruxa: “Vai ser burro até à cova!” Não foi, provou este Diógenes, como Diógenes de Sinope na Grécia de antes de Cristo, fintando convenções pouco favoráveis. Ou em Beto, estrela do Barreirense que poderia ter destronado Chalana, não fosse a “cabeça fraca” e ter desgraçado o futuro numa noite de copos.

Reais, ficcionadas, fantasiosas, mais ou menos estereotipadas (para alguns leitores, podem ser, por vezes, previsíveis), as personagens de Bruno Vieira Amaral são anónimos cuja existência tende a desinteressar. O mérito do escritor está em provar o contrário. Isso está superado. Leia-se sobre Teixeira, “beirão, baixote” e gerente do Covil, o “estabelecimento” onde se cruza a informação sobre cada um dos habitantes do bairro — um bairro onde nunca mais se soube de Vera, a rapariga que desapareceu de casa de seus pais num dia de Abril de 1993, conforme deu no Telejornal, aluna de cincos, poeta, tímida e recatada. Os nomes desfilam na tal sequência alfabética. Adalberto, António Comunista, Beatriz, Delgado, Idalécio Cruz, o fantasma de Manuel Morais, Hortência, que foge à ordem das coisas, como a que diz: “A freguesia do Bairro Amélia insere-se na zona do vale do Tejo”. É um lugar onde “ninguém morre de cancro, mas de doenças ruins”, um “mundo pequeno e feio, de figuras ignoradas e obscenas”, no qual Lito Capone, o gangster, reina sem rival.

Depois do ensaio literário Guia Para 50 Personagens de Ficção, este ano publicado pela Guerra e Paz, Bruno Vieira Amaral também foge, nesta sua estreia no romance, à ordem, ou melhor, desafia o convencional que diz, por exemplo, que as notas de rodapé são segundo plano em literatura. Aqui são um contínuo imprescindível para perceber os mistérios do Bairro Amélia. Enquanto colectivo esta personagem vai ficar no imaginário literário português. Quanto ao resto, “haja quem seja capaz de detectar os traços de verdade”.

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“O que é para um homem a vergonha abstracta de um país comparada com a sua vergonha pessoal, as dores silenciosas da sua humilhação?” Quando saiu do Bairro Amélia, Bruno Eugénio, o “filho da Celeste”, achou que seria para sempre. No rádio, passava (ou pelo menos ele acreditava que sim) a Suite Bergamasque, de Debussy, e tudo ia bem com a sua sensação de triunfo. Fora num dia em finais de 1990. Agora, 20 anos depois, recém-separado de Sara e despedido das vendas por Ana Mendes, “grande cabra”, Bruno Eugénio, na sua “apatia” perante o desemprego, volta ao local de partida e experimenta a humilhação do regresso e o confronto com a memória que tentou apagar, nunca alimentando antes as histórias que a mãe lhe contava ao telefone sobre os mortos e desaparecidos da sua infância. “Cresci com a ideia de que só os derrotados, os vagabundos e os infelizes não saíam de lá”, confessa o narrador, uma primeira pessoa íntima a tentar reenquadrar-se social e afectivamente numa paisagem de traços familiares, silhuetas envelhecidas e nem sempre enquadradas. É o arranque de As Primeiras Coisas, estreia de Bruno Viera Amaral (n. 1978) na ficção, com um romance de personagens a consumirem-se numa espécie de inferno dantesco, onde o fogo é alimentado por um claustrofóbico quotidiano de misérias. “O Bairro Amélia arde”, há-de escrever o narrador.

O prólogo serve para essa apresentação pessoal e de intenção narrativa. Dá os pressupostos do que aí vem. Fantasia e realidade coladas num jogo assumido de início, com o nome do autor e do narrador a confundirem-se: Bruno. Bruno será mais uma personagem do grotesco que o bairro encerra, um labirinto narrativo acerca do qual cada habitante deixa uma pista. Fica na margem Sul do Tejo. Um território delimitado, construído à imagem dos bairros populares que no início e em meados dos anos 1970 foram nascendo mais ou menos clandestinamente à sombra de aglomerados de emprego proletário como a Quimigal ou CUF, à custa de gente em fuga da pobreza das aldeias e dos muitos retornados de África. Vale da Amoreira. Seixal. Barreiro. Alhos Vedros. São as referências geográficas deste espaço marginal de poucas possibilidades, construído por Bruno Viera Amaral para desenvolver uma história colectiva que nasce de um dicionário de singularidades.

Deambulando no seu retorno forçado, Bruno Eugénio encontra o fotógrafo Virgílio, autor da sua primeira fotografia em cima do inevitável cavalinho, tinha ele dois anos. Virgílio é o homem que sabe tudo no Bairro Amélia. Bate-lhe à porta de casa quando quase se está a afundar numa depressão, depois de ter sido rejeitado por Carla, a empregada do café por quem morria de desejos. Nesse desespero, rasga uma lista, um inventário de nomes e destinos feito com entusiasmo nas conversas com a mãe. Agora quer saber dos mortos e desaparecidos no bairro durante a sua ausência. Quando lhe bate à porta, Virgílio vem devolver-lhe essa memória. Passagem para uma outra, literária, que o amigo Márcio Serrano lhe avivara: “nenhuma terra é nossa enquanto não enterrarmos lá um morto”. É uma ideia que está no início de Cem Anos de Solidão, referência entre muitas: musicais, gastronómicas, de bola e de política. Um quadro social e sensitivo bem articulado, pontuado de ironia e de amargura, de nostalgia e de inquietante sentido de identificação com o outro, mesmo nas suas opções mais questionáveis.

É um narrador em processo de reconstrução da sua identidade. Diz sobre Virgílio. “É ele quem me guia para o interior dos parêntesis abertos entre o dia e a noite, essa estranha hora suspensa em que os loucos se apaziguam, os homens bebem aguardente em silêncio, as mulheres perto do lume ouvem a respiração contínua dos bicos do fogão, as crianças bocejam o cansaço acumulado do dia, me mostra os locais onde tudo aconteceu…” E, de A a Z, as personagens desfilam, seguindo uma estrutura que se revela muito mais do que um inventário de nomes ou existências. A teia da substância faz-se recorrendo a uma forma que é a grande originalidade deste As Primeiras Coisas. Isso e um enorme sentido de ritmo e de domínio da linguagem. A poética, a popular, o calão, a ginga dos malandros, ou a dos que se acham vítimas de conjuras para explicar o que não conseguem. Quem seguia Bruno Vieira Amaral no blogue Circo da Lama não fica surpreendido. Antes confirma uma vocação. Ela está aqui, na tragédia de Fion, o poeta falhado, e na loucura de Flaviana. Na personagem de Diógenes, que desafiou os maus presságios da vizinha, velha bruxa: “Vai ser burro até à cova!” Não foi, provou este Diógenes, como Diógenes de Sinope na Grécia de antes de Cristo, fintando convenções pouco favoráveis. Ou em Beto, estrela do Barreirense que poderia ter destronado Chalana, não fosse a “cabeça fraca” e ter desgraçado o futuro numa noite de copos.

Reais, ficcionadas, fantasiosas, mais ou menos estereotipadas (para alguns leitores, podem ser, por vezes, previsíveis), as personagens de Bruno Vieira Amaral são anónimos cuja existência tende a desinteressar. O mérito do escritor está em provar o contrário. Isso está superado. Leia-se sobre Teixeira, “beirão, baixote” e gerente do Covil, o “estabelecimento” onde se cruza a informação sobre cada um dos habitantes do bairro — um bairro onde nunca mais se soube de Vera, a rapariga que desapareceu de casa de seus pais num dia de Abril de 1993, conforme deu no Telejornal, aluna de cincos, poeta, tímida e recatada. Os nomes desfilam na tal sequência alfabética. Adalberto, António Comunista, Beatriz, Delgado, Idalécio Cruz, o fantasma de Manuel Morais, Hortência, que foge à ordem das coisas, como a que diz: “A freguesia do Bairro Amélia insere-se na zona do vale do Tejo”. É um lugar onde “ninguém morre de cancro, mas de doenças ruins”, um “mundo pequeno e feio, de figuras ignoradas e obscenas”, no qual Lito Capone, o gangster, reina sem rival.

Depois do ensaio literário Guia Para 50 Personagens de Ficção, este ano publicado pela Guerra e Paz, Bruno Vieira Amaral também foge, nesta sua estreia no romance, à ordem, ou melhor, desafia o convencional que diz, por exemplo, que as notas de rodapé são segundo plano em literatura. Aqui são um contínuo imprescindível para perceber os mistérios do Bairro Amélia. Enquanto colectivo esta personagem vai ficar no imaginário literário português. Quanto ao resto, “haja quem seja capaz de detectar os traços de verdade”.