Os negócios da política
Brecht escrevia sobre o César antigo pensando no seu tempo, tal como é inevitável que Gonçalo Amorim tenha encenado a vida de Roma a pensar no Portugal de hoje
No início do século XIX, em plena era do iluminismo, o general prussiano Carl von Clausewitz afirmava que a guerra era a continuação da política por outros meios. Cem anos depois, o escritor marxista alemão Bertolt Brecht escrevia que a guerra, e cada vez mais a política, eram a continuação do comércio por outros meios.
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No início do século XIX, em plena era do iluminismo, o general prussiano Carl von Clausewitz afirmava que a guerra era a continuação da política por outros meios. Cem anos depois, o escritor marxista alemão Bertolt Brecht escrevia que a guerra, e cada vez mais a política, eram a continuação do comércio por outros meios.
Esse é o tema do seu romance inacabado "Os Negócios do Senhor Júlio César", que Brecht escreveu na década de 30, e que agora o Teatro Experimental do Porto levou à cena no Teatro Nacional São João, numa inventiva encenação de Gonçalo Amorim. A obra narra de forma minuciosa, ainda que ficcionada, a ascensão política de Caio Júlio César, que Brecht identifica como sendo o primeiro político que “não tratava os homens de negócios espanhóis como espanhóis, mas como homens de negócios”. Ou seja, para quem o dinheiro tinha já o poder nivelador de esvaziar todas as diferenças culturais e ideológicas, como dizia Georg Simmel, tornando-se na arma ideal para políticos oportunistas desejosos de aliar populismo e grandes interesses económicos. Brecht nota que César era de uma importante família romana, mas que se aliou ao partido democrata da cidade, supostamente preocupado com os mais desfavorecidos. E afirma que foi a política de fornecer trigo gratuito aos mais pobres da cidade — uma medida supostamente benéfica — que arruinou os pequenos comerciantes e proprietários, tornando o povo e o estado cada vez mais dependentes dos grandes latifundários senhores de escravos.
E aquilo que os grandes proprietários não podiam comprar, podiam combater, e assim o exército romano, inicialmente movido pela defesa de Roma e o ideal republicano, tornou-se numa formidável máquina de abrir novos mercados aos produtos romanos. Brecht, como grande escritor que era, sabia que a ironia era a melhor ferramenta para exprimir a força das suas angústias, e por isso conta a história da mulher que chorava o filho morto na guerra ao mesmo tempo que a sua cunhada chorava porque os generais dessa mesma guerra já não lhe compravam abastecimentos para o exército, mostrando-nos assim uma família — uma sociedade — destroçada ao mesmo tempo pela guerra e pela paz.
Procurando denunciar o cinismo e os interesses da política, escapou a Brecht que muitas decisões políticas são também determinadas pelo formalismo institucional e pela histeria do momento, mas o autor alemão escrevia sobre o César antigo pensando no seu tempo e na irresistível ascensão do partido nazi, tal como é inevitável que Gonçalo Amorim tenha encenado a vida de Roma a pensar no Portugal de hoje, preso entre uma muralha claustrofóbica e as ruínas da miséria. E entre a paz e a guerra, entre a muralha e a ruína, impera o desespero que perpassa em cada palavra desta obra de Brecht.