As precisões dos homens
Claro que se começam logo a fazer contas de cabeça. O isco é irresistível apesar do aviso: a estatística “carece de objectividade”, mas talvez por isso o mapa que dela resulta seja tão atractivo. Saber o grau de satisfação com a própria vida numa escala de zero a dez é uma maneira de se situar nessa vida. Um ponto singular num colectivo com um sentido. Um sentido como outro qualquer. Como o emprego, a família, os amigos, a casa, o carro, o lugar das férias... os outros e nós em relação a eles. Essas são as variáveis comuns para chegar à contabilidade pessoal, partes de uma soma para encontrar o lugar na tal tabela da felicidade humana elaborada a partir do índice médio de felicidade de 149 países. São expectativas propostas pela sociedade neo-liberal em crise, num romance à procura do lugar do indivíduo.
Lidas poucas páginas do terceiro romance de David Machado (n. 1978), chega-se à pergunta central — “O que é isto de andar por aqui?” —, de resposta ainda mais difícil quando nos deram a entender, ou achamos que tínhamos entendido, que afinal havia um sentido. Erro, está a dizer a actualidade. Daniel está nesta deriva. Trinta e oito anos, dois filhos e uma mulher que foram viver para longe por causa do desemprego dela; também ele está desempregado de um emprego de futuro, vendedor de viagens com currículo cheio numa agência que faliu, um amigo preso por assalto a uma bomba de gasolina no desespero das dívidas e outro fechado há 12 anos num apartamento por depressão. Daniel vende agora aspiradores porta-a-porta e vive sozinho com o subsídio de desemprego num apartamento com uma hipoteca demasiado alta para os actuais rendimentos. Mesmo assim, quando interrogado por Xavier, o amigo deprimido, Daniel responde que, de zero a dez, o seu grau de satisfação com a vida que tem é de 8,0.
Portugal, 2013. Daniel é mais um na engrenagem em que a identidade está veiculada ao emprego e quando não há emprego ou — melhor um pouco — ainda há a precaridade laboral se pergunta: quem sou? “Eu sou o que faço” é a mensagem sempre implícita no discurso de Daniel e dos outros, os do livro e das vidas que por lá andam. Enquanto autor, David Machado parte para este Índice Médio de Felicidade com a tese contrária. “As coisas ficaram difíceis muito depressa”, escreve Daniel na longa carta ao amigo preso que é este romance. Zangado com essa ausência e com Almodôvar, Daniel narra uma sucessão de acontecimentos que poderiam levar ao desespero, não fosse o caso de ele ser um homem convicto do seu índice 8 de felicidade mesmo quando tudo parece ir mal e tem de reescrever o plano que traçou para o seu futuro. “Importa isto: eu acreditava na possibilidade de refazer tudo, agarrar de novo as partes da minha vida que se tinham soltado, ajustá-las mais e melhor ao meu corpo. E não estava zangado. Nessa altura ainda não estava zangado. Tudo o que tinha de fazer era manter-me atento às coisas essenciais e seguir atrás delas, não parar para olhar para trás, calcular bem cada passo. Eu acreditava que, se fizesse tudo certo, a vida não voltaria a atravessar-se no meu caminho.”
Índice 8.0 de felicidade, o mesmo que a Costa Rica, o primeiro da tabela de 149 países mais ou menos felizes. Seria lá o lugar de Daniel? Ele está apostado em que não, que pode ser pelo menos um 8,0 num país de média 5,7, Portugal, ainda que Xavier lhe chame a atenção para a ligeireza da avaliação. Esta poderia ser a história de um declínio. pessoal: os desaires sucedem-se, Daniel perde a casa, vai dormir para o carro e do carro para a clandestinidade de um escritório abandonado; arrisca perder a família por responder às solicitações mais absurdas e ter a certeza de que se sairá bem. É uma certeza em contra-corrente que poderia deitar todo o livro a perder, não fosse a ironia que atravessa tanto azar. O declínio também é colectivo: Flor, a filha adolescente, deixa de acreditar nos seus ideais políticos e cruza os braços como a sociedade.
O perigo de os chamados “livros positivos” poderem resvalar para a emoção fácil é grande e por vezes espreita. É o perigo da verosimilhança literária, o tal que faz a ficção desconfiar da realidade qual ela se apresenta excessiva. David Machado já mostrou ser capaz de lidar com isso nos dois romances anteriores onde se revelou ligado à realidade e eficaz no modo como a transporta para a ficção. Tanto no domínio da linguagem quanto no da estrutura, está atento às pontas soltas — que ata — e a uma lógica narrativa que por vezes fica demasiado visível na leitura. Nada que lhe tire o ritmo, rápido, e a capacidade de prender, porque é preciso saber no que deu a esperança de Daniel quando todas as variáveis conspiram para a derrotar. Ou seja: que resposta irá ele dar quando lhe perguntarem qual o seu grau de satisfação com a vida.
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Claro que se começam logo a fazer contas de cabeça. O isco é irresistível apesar do aviso: a estatística “carece de objectividade”, mas talvez por isso o mapa que dela resulta seja tão atractivo. Saber o grau de satisfação com a própria vida numa escala de zero a dez é uma maneira de se situar nessa vida. Um ponto singular num colectivo com um sentido. Um sentido como outro qualquer. Como o emprego, a família, os amigos, a casa, o carro, o lugar das férias... os outros e nós em relação a eles. Essas são as variáveis comuns para chegar à contabilidade pessoal, partes de uma soma para encontrar o lugar na tal tabela da felicidade humana elaborada a partir do índice médio de felicidade de 149 países. São expectativas propostas pela sociedade neo-liberal em crise, num romance à procura do lugar do indivíduo.
Lidas poucas páginas do terceiro romance de David Machado (n. 1978), chega-se à pergunta central — “O que é isto de andar por aqui?” —, de resposta ainda mais difícil quando nos deram a entender, ou achamos que tínhamos entendido, que afinal havia um sentido. Erro, está a dizer a actualidade. Daniel está nesta deriva. Trinta e oito anos, dois filhos e uma mulher que foram viver para longe por causa do desemprego dela; também ele está desempregado de um emprego de futuro, vendedor de viagens com currículo cheio numa agência que faliu, um amigo preso por assalto a uma bomba de gasolina no desespero das dívidas e outro fechado há 12 anos num apartamento por depressão. Daniel vende agora aspiradores porta-a-porta e vive sozinho com o subsídio de desemprego num apartamento com uma hipoteca demasiado alta para os actuais rendimentos. Mesmo assim, quando interrogado por Xavier, o amigo deprimido, Daniel responde que, de zero a dez, o seu grau de satisfação com a vida que tem é de 8,0.
Portugal, 2013. Daniel é mais um na engrenagem em que a identidade está veiculada ao emprego e quando não há emprego ou — melhor um pouco — ainda há a precaridade laboral se pergunta: quem sou? “Eu sou o que faço” é a mensagem sempre implícita no discurso de Daniel e dos outros, os do livro e das vidas que por lá andam. Enquanto autor, David Machado parte para este Índice Médio de Felicidade com a tese contrária. “As coisas ficaram difíceis muito depressa”, escreve Daniel na longa carta ao amigo preso que é este romance. Zangado com essa ausência e com Almodôvar, Daniel narra uma sucessão de acontecimentos que poderiam levar ao desespero, não fosse o caso de ele ser um homem convicto do seu índice 8 de felicidade mesmo quando tudo parece ir mal e tem de reescrever o plano que traçou para o seu futuro. “Importa isto: eu acreditava na possibilidade de refazer tudo, agarrar de novo as partes da minha vida que se tinham soltado, ajustá-las mais e melhor ao meu corpo. E não estava zangado. Nessa altura ainda não estava zangado. Tudo o que tinha de fazer era manter-me atento às coisas essenciais e seguir atrás delas, não parar para olhar para trás, calcular bem cada passo. Eu acreditava que, se fizesse tudo certo, a vida não voltaria a atravessar-se no meu caminho.”
Índice 8.0 de felicidade, o mesmo que a Costa Rica, o primeiro da tabela de 149 países mais ou menos felizes. Seria lá o lugar de Daniel? Ele está apostado em que não, que pode ser pelo menos um 8,0 num país de média 5,7, Portugal, ainda que Xavier lhe chame a atenção para a ligeireza da avaliação. Esta poderia ser a história de um declínio. pessoal: os desaires sucedem-se, Daniel perde a casa, vai dormir para o carro e do carro para a clandestinidade de um escritório abandonado; arrisca perder a família por responder às solicitações mais absurdas e ter a certeza de que se sairá bem. É uma certeza em contra-corrente que poderia deitar todo o livro a perder, não fosse a ironia que atravessa tanto azar. O declínio também é colectivo: Flor, a filha adolescente, deixa de acreditar nos seus ideais políticos e cruza os braços como a sociedade.
O perigo de os chamados “livros positivos” poderem resvalar para a emoção fácil é grande e por vezes espreita. É o perigo da verosimilhança literária, o tal que faz a ficção desconfiar da realidade qual ela se apresenta excessiva. David Machado já mostrou ser capaz de lidar com isso nos dois romances anteriores onde se revelou ligado à realidade e eficaz no modo como a transporta para a ficção. Tanto no domínio da linguagem quanto no da estrutura, está atento às pontas soltas — que ata — e a uma lógica narrativa que por vezes fica demasiado visível na leitura. Nada que lhe tire o ritmo, rápido, e a capacidade de prender, porque é preciso saber no que deu a esperança de Daniel quando todas as variáveis conspiram para a derrotar. Ou seja: que resposta irá ele dar quando lhe perguntarem qual o seu grau de satisfação com a vida.