Igualdade para mais liberdade
Os relatórios da OCDE, designadamente do PISA, indicam que temos um sistema de ensino muito desigual em que convivem, por vezes lado a lado, escolas muito boas (públicas e privadas), em que os alunos obtêm bons resultados escolares, com escolas muito más (públicas e privadas), em que o insucesso e o abandono escolar são muito elevados e que, portanto, não inspiram confiança às famílias. Portugal é mesmo, de acordo com os dados do PISA, um dos países da OCDE com maior desigualdade escolar.
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Os relatórios da OCDE, designadamente do PISA, indicam que temos um sistema de ensino muito desigual em que convivem, por vezes lado a lado, escolas muito boas (públicas e privadas), em que os alunos obtêm bons resultados escolares, com escolas muito más (públicas e privadas), em que o insucesso e o abandono escolar são muito elevados e que, portanto, não inspiram confiança às famílias. Portugal é mesmo, de acordo com os dados do PISA, um dos países da OCDE com maior desigualdade escolar.
O desafio que o país tem pela frente é pois o de diminuir esta desigualdade, reduzir o insucesso escolar e o abandono precoce, criando condições para aumentar, em cada escola, o número de alunos com aproveitamento positivo, sempre que possível bons, muito bons e excelentes. Este desafio exige dos poderes públicos políticas e investimentos centrados na melhoria da qualidade pedagógica, organizacional, material e tecnológica de todas as escolas. Exige políticas de estímulo e de apoio, mas também de regulação e de controlo da qualidade, baseados em sistemas de informação e de avaliação.
Porém, o que tem feito o Governo? Cancelou todos os programas de combate ao insucesso e de avaliação da qualidade do ensino, retirou autonomia às escolas públicas e reduziu a capacidade destas para atrair novos alunos, suspendeu todos os programas de modernização das escolas. Resumindo, o Governo desistiu de melhorar a qualidade das escolas públicas. E porquê?
A resposta vem com a aprovação do diploma de financiamento das escolas privadas: porque o Governo acredita que o mercado fará aquilo que ele não consegue fazer. Com o cheque-ensino o Governo teria encontrado uma solução milagrosa que o dispensaria de ter uma política de exigência com as escolas. O Governo parece acreditar que, financiando mais generosamente as escolas privadas, o mercado e a competição entre escolas farão o que é preciso pela qualidade.
A solução encontrada pelo Governo merece, contudo, que nos coloquemos várias interrogações.
Primeira interrogação: em que outro país do mundo os problemas da qualidade do ensino básico e secundário se resolveram com o cheque-ensino? Resposta: em nenhum. A opção pelo cheque-ensino vem ao arrepio de todas as recomendações dos organismos internacionais. Sabe-se, hoje, que esta opção, ensaiada em países como o Reino Unido e a Suécia, se revelou desastrosa do ponto de vista da melhoria global da qualidade dos sistemas de ensino.
Segunda interrogação: será que estaremos então apenas perante uma crença ideológica no mercado? Resposta: se é verdade que a opção pelo cheque-ensino revela radicalismo ideológico por parte do Governo, revela sobretudo cedência a grupos de interesse. Com esta solução o Governo, objetivamente, transfere recursos públicos adicionais para algumas escolas privadas e para algumas famílias, cujas escolhas educativas passarão agora a ser financiadas pelo Estado.
Terceira interrogação: pode esta medida vir a beneficiar alunos de famílias pobres que, com o cheque-ensino, poderão escolher mais livremente e deixar de estar obrigados a frequentar uma escola pública? Resposta: quando existe possibilidade de escolha, as escolas com muita procura “naturalmente” selecionam os alunos. Esta medida permitirá que as escolas com mais procura, entre dois alunos bons, um pobre e outro rico, escolham o rico com o apoio financeiro do Estado.
Quarta interrogação: existindo já liberdade de escolha entre universidades públicas, porque não pode esta ser aplicada ao ensino básico e secundário? Resposta: as universidades estão impedidas, pelas regras de acesso ao ensino superior, de escolher os seus alunos, estão obrigadas a aceitar todos os alunos que cumpram os requisitos estabelecidos. Por isso o financiamento é feito às instituições e não aos alunos, embora varie em função do número de alunos que as instituições consigam atrair com base na sua reputação. Será que as escolas privadas estão disponíveis para, em troca do cheque-ensino, abdicar do poder de selecionar os alunos e de aceitar todos aqueles que cumpram requisitos? Será que esta é uma exigência do Governo para poderem beneficiar do cheque-ensino?
O Governo tem dois problemas, fruto de dois preconceitos: um com as escolas públicas, outro com a igualdade de oportunidades. Tenta resolver o primeiro problema alimentando a oposição entre público e privado, com um tratamento que favorece o privado. Tenta resolver o segundo afirmando o primado do princípio da liberdade sobre o da igualdade. Ora, a social-democracia foi construída, justamente, com tentativas de superação destas oposições, não com a sua agudização.
No caso da educação, a superação passa por reconhecer que atribuir o primado à igualdade na organização e funcionamento da escola é a melhor forma de garantir a quem a frequenta mais liberdade de escolha na sua vida adulta futura.
O desenvolvimento dos países está ancorado nesta instituição, a escola pública, que se inventou para garantir a igualdade de oportunidades entre todos os cidadãos, a qual, por sua vez, garante a todos mais liberdade de escolha na construção do seu futuro.
Maria de Lurdes Rodrigues é presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e professora de Políticas Públicas no ISCTE-IUL. A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.