Bibliotecários argentinos encontram manuscrito de Borges

O papel agora descoberto com a "inconfundível letrinha" de Borges pode ter sido deliberadamente deixado entre as páginas de uma revista para que viesse a ser encontrado

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O manuscrito de Borges agora encontrado AFP PHOTO

Descrita assim, na sua estrita factualidade, a descoberta não parece particularmente sensacional, mas, como Borges se fartou de exemplificar em contos e ensaios (admitindo que os dois géneros sejam distinguíveis na sua obra), o mais trivial dos factos pode ocultar intrincadas raízes. E não há dúvida de que esta história tem bastante mais que se lhe diga.

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Descrita assim, na sua estrita factualidade, a descoberta não parece particularmente sensacional, mas, como Borges se fartou de exemplificar em contos e ensaios (admitindo que os dois géneros sejam distinguíveis na sua obra), o mais trivial dos factos pode ocultar intrincadas raízes. E não há dúvida de que esta história tem bastante mais que se lhe diga.

Antes de mais, convém precisar que o papel não foi propriamente encontrado por acaso. Rosato e Álvarez andam há anos a correr os depósitos da Biblioteca Nacional, compulsando livros e revistas que possam ter pertencido a Borges, director da instituição entre 1955 e 1973. Anti-peronista convicto, o escritor, que se reformou quando o general Juan Peron voltou ao poder, doou um grande acervo de livros à Biblioteca, mas parece que os funcionários, peronistas, se “esqueceram” de assinalar, nos volumes, a identidade do doador. Mesmo assim, Rosato e Álvarez já tinham detectado várias anotações manuscritas de Borges nas margens de livros e revistas, ainda que, até agora, nenhum manuscrito solto.

Parece muito provável que tenha sido o próprio Borges a deixar o papel entre as páginas da revista. E é pelo menos plausível que o tenha feito com a intenção de que este viesse a ser encontrado no futuro, mas para se perceber a razoabilidade desta hipótese, é preciso recordar não apenas a história editorial de Tema do Traidor e do Herói, mas também o argumento deste conto (admitindo que exista algum conto para lá do respectivo argumento), que inspiraria o filme A Estratégia da Aranha, de Bertolucci.

Borges publicou pela primeira vez a história precisamente no número 112 da Sur, em Fevereiro de 1944, mas com um final diferente do que veio a ser o remate definitivo do conto. Uns meses depois, quando publicou Ficções, que reedita os contos de O Jardim dos Caminhos que se Bifurcam (1941) e lhes soma várias histórias inéditas ou dispersas, Borges acrescenta um novo parágrafo ao Tema do Traidor e do Herói, que torna este conto um exemplo ainda mais brilhante e complexo do gosto do autor por criar jogos de espelhos e matrioskas literárias, com histórias dentro de histórias, e por complicar as distinções entre passado e presente, realidade e ficção, autor e narrador.

Um Borges que talvez seja a personagem Borges de um autor homónimo começa por explicar que, sob a influência de Chesterton e Leibniz, imaginou um argumento que talvez venha a escrever. A acção situa-se, “por comodidade”, na Irlanda e no ano de 1824. O narrador é um historiador chamado Ryan, bisneto “do jovem, do heróico, do belo, do assassinado Fergus Kilpatrick”. Conspirador nacionalista irlandês, Kilpatrick é morto num teatro (como Lincoln) e a polícia britânica nunca achará o culpado. Ryan investiga o assunto e constata, com perplexidade, que vários elementos do crime parecem repetir as circunstâncias do assassinato de Júlio César tal como Shakespeare o descreve. O investigador é levado a supor “uma secreta forma do tempo, um desenho de linhas que se repetem”. As surpresas de Ryan sucedem-se. Descobre que Nolan, o melhor amigo de Kilpatrick, traduzira o Júlio César de Shakespeare para o gaélico. E há um momento no conto em que Ryan “descobre nos arquivos” um manuscrito de Nolan, tal como os bibliotecários argentinos agora descobriram, nos arquivos da Biblioteca, um manuscrito de Borges.

O leitor do conto ficará depois a saber que o idolatrado Kilpartrick era afinal um traidor, mas ao mesmo tempo um herói, que combinou com Nolan a sua própria execução, concebida de modo a favorecer a causa nacionalista, o que implicava silenciar a sua traição. Nolan, com pouco tempo para urdir a trama, viu-se obrigado a plagiar Shakespeare, o “inimigo inglês”.   

Na versão inicial, a história acabava com a morte de Kilpatrick, que, atingido com uma bala no peito, “apenas pôde articular, entre duas efusões de brusco sangue, algumas palavras previstas”. Mas no parágrafo cujo manuscrito agora apareceu, Ryan suspeita de que Nolan intercalou deliberadamente as passagens imitadas de Shakespeare para que alguém, no futuro, desse com a verdade. Também ele resolve, afinal, silenciar a traição do bisavô e “publica um livro dedicado à glória do herói”. E Borges remata: “também isso, talvez, estava previsto”.Rosato e Álvarez gostarão de acreditar que também estava previsto que viessem a encontrar esta folha, que alguém (Borges?) deixou há décadas entre as páginas de uma revista.