O vozeirão de Brittany Howard neste tão quente Paredes de Coura

Brittany Howard conquistou o público, Bombino pô-lo em transe furioso, os Unknown Mortal Orchestra deliciaram-se e deliciaram. Paredes de Coura, dia 2, quarta-feira, um dia antes do arranque em pleno.

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Os membros da organização atarefavam-se ainda a arranjar os últimos pormenores para que tudo estivesse operacional hoje, quinta-feira, dia em que a 21.ª edição do Paredes de Coura arranca em pleno, com o já clássico Jazz na Relva durante a tarde, com concertos de The Knife, Hot Chip, Jagwar Ma, Toy ou Vaccines divididos entre os palcos Vodafone e Vodafone FM. Antes, porém, a noite de quarta-feira teve muito para mostrar: os aguardadíssimos Alabama Shakes, os óptimos Unknown Mortal Orchestra, o contagiante Bombino.

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Os membros da organização atarefavam-se ainda a arranjar os últimos pormenores para que tudo estivesse operacional hoje, quinta-feira, dia em que a 21.ª edição do Paredes de Coura arranca em pleno, com o já clássico Jazz na Relva durante a tarde, com concertos de The Knife, Hot Chip, Jagwar Ma, Toy ou Vaccines divididos entre os palcos Vodafone e Vodafone FM. Antes, porém, a noite de quarta-feira teve muito para mostrar: os aguardadíssimos Alabama Shakes, os óptimos Unknown Mortal Orchestra, o contagiante Bombino.

Horas antes dos concertos, olhávamos em volta e víamos: muita, tanta gente na relva, uma multidão de colchões e barcos insufláveis no rio e campismo já repleto (“Welcome to the jungle”, escrevera alguém num pano à entrada, mas era selva sem perigos e com todo o prazer que a sombra oferece quando o calor é tão intenso, tão acima dos 30ºC)  

A noite não caíra ainda, mas a música que ouvíamos pedia-a. Era música de banda, era música para pista de dança: a Discotexas Band, o combo da Discotexas que reproduz as canções da editora e que, com Xiboni ou Moullinex dividindo-se entre baixos e guitarras, teclados e sintetizadores e demais parafernália sonora, oferecia a Da Chick, meio rapper, meio punk, sempre a carregar na estridência, a base disco e funk e house mesclado de rockabilly (também aconteceu) que faria as delícias de uma madrugada e daqueles que nela dançassem. Ainda que, como os próprios cantaram, via Moullinex, “24 hours a day, take my pain away”, e ainda que a muito lúdica versão de Maniac (sim, a da banda sonora de Flashdance), pedaço de elegância, muito lúdica e muito efusiva, ou não estivesse em palco Da Chick (que continuamos sem compreender porque insiste em comunicar em inglês quando fala para portugueses), tenha sido recebida como prazer para acabar com estrondo com as “sunset parties” deste mundo.

Começou então com a Discotexas Band o segundo dia de Paredes de Coura, o último antes do arranque em pleno, quinta-feira. Aquele em que o Palco Vodafone FM, o da tenda, não do famoso anfiteatro natural, transbordou para cantar o soul-rock de Hold on com os Alabama Shakes e que entrou em histeria de crowd-surf e bamboleio furioso com o concerto feito rave tuaregue do magnífico Bombino – e onde vimos também uma banda admirável, Unknown Mortal Orchestra, acrescentar ao psicadelismo solar, introspectivo, dos seus dois álbuns, uma explosão rock’n’roll que terá feito a Jimi Hendrix Experience, onde quer que estejam Hendrix, Mitch Mitchell e Noel Redding, aplaudir em aprovação.

Horas depois no concerto, a banda de Ruban Nielson publicava uma foto na sua conta de Instagram e escrevia que em Paredes de Coura tinha encontrado “provavelmente o melhor público" da sua carreira. E sim, o público foi generoso com a banda, ao vivo um power trio portentoso em que as canções, pérolas pop de psicadelismo em suspensão, quais reflexos dos Beatles (os de Revolver) transformados em veículo para Nielson cantar, estranhamente dolente, neurose e fragilidade: “Isolation, it can put a gun in your head”, ouvimo-lo em From the sun. Mas ali, no palco de Paredes de Coura, tudo isso é sublimado. Quer So good at being in trouble, quer a última canção do concerto, essa Ffunny ffrends com melodia entoada pelo público, quer, no limite, todas as canções, são prolongadas em sequências de rock cósmico, em êxtase “Hawkwindeano”, “Hendrixiano”, “Ruban Nielsoniano”.

Vemos o vocalista largar o microfone e trocar a voz andrógina pela expressividade da guitarra que zumbe, que levita, que explode em mil direcções. Vemo-lo mover-se como que respondendo à descarga eléctrica do instrumento, ouvimos o extraordinário baterista (Riley Geare) entregar-se algures a um solo que é mais um elemento para prazer sónico e não desnecessária demonstração de ego e devolvemos o elogio aos autores de um dos melhores álbuns de 2013, II: um grande concerto perante uma plateia que, pouco depois, cresceria como em nenhum outro momento da noite. Responsáveis: os Alabama Shakes. Ou melhor, essa mulher de voz poderosa e guitarra a tiracolo chamada Brittany Howard.

A banda de Athens, no sul dos Estados Unidos, fenómeno recente da música de raiz americana, tem um amor declarado pelo soul clássica, pelo gospel e pelo rock’n’roll dos primórdios. Começaram como banda de versões e isso nota-se, para o bem e para o mal. Ou seja, conhecem intimamente as expressões musicais que idolatram, e isso é bom, mas agem como se estivessem ofuscados por esse brilho, e isso não é necessariamente bom, já que os torna demasiado conservadores. Felizmente têm Brittany Howard, discípula sábia dos seus mestres: canta com a alma na garganta (e todos a acompanham na canção que os revelou, Hold on), mostra sageza soul ao falar de Heartbreaker (“não é uma canção triste, é uma canção sobre aprender lições”) e revela-se um furacão ao apresentar essa Hang loose que ouvimos como vívida homenagem a um dos pais do rock’n’roll, Chuck Berry.

Os Alabama Shakes “são” Brittany Howard. A banda acompanha-a com competência mas é nela que, literal e metaforicamente, se concentram todos os focos de luz. Tem vozeirão e espírito soul (curiosamente, apesar de nos recordarmos de Big Mama Thornton ao longo do concerto, as suas referências parecem ser masculinas: Otis Redding, Sam Cooke, Marvin Gaye). O público adora-a e, através dela, adora estas canções soul que encontramos em Boys & Girls. Quando se tornar cantora de corpo inteiro, de alma preenchida, será um caso sério. E falando de caso sério…

À tarde, víramos um guitarrista tuaregue tocar na aldeia das Porreiras para 50 privilegiados (um dos “concertos surpresa” que a Vodafone FM tem promovido nas redondezas). À noite o mesmo guitarrista, acompanhado pelos mesmos três músicos, mas agora em versão eléctrica, ateou fogo sob a multidão e foi ver como Bombino, homem do Níger que absorveu a música do seu povo e a complementou com vídeos de Jimi Hendrix, suscitou este cenário surpreendente: público em crowd-surfing como em concerto punk, acompanhando a furiosa cadência rítmica da música como em ritual transe de que toda a gente sai viva, mas necessariamente diferente.

O autor do celebrado Nomad, produzido pelo Black Keys Dan Auerbach, é um músico sábio. Tacteia o público perante si e experimenta o que será mais indicado para quem o vê. Começou dolente, com a guitarra serpenteando e o ritmo quebrado da bateria a apalpar terreno. Vinte minutos depois do início, estava decidido: as canções seriam uma torrente interminável, com a bateria a fazer corar de vergonha a caixa de ritmos mais eficiente (a sabem-se lá quantas centenas de batidas por minuto), com o baixo e a guitarra ritmo presos num loop encantatório e Bombino, à uma, a conduzir e a ser conduzido pela banda. No palco do Paredes de Coura, este tuaregue foi como que uns Tinariwen com uma injecção de adrenalina, foi os contratempos dos Skatalites atirados ao espaço sideral, foi festa tão festa e tão intensa que, pela primeira vez nesta edição do festival, houve direito a encore.


Hoje, quinta-feira, o calor continua. O festival prosseguirá. Venham os Jagawar Ma, os Hot Chip, os The Knife, os Vaccines ou os Toy.