Que(m) fica
Os mais de cinco anos de jornada emigrante trouxeram-me a lucidez necessária para perceber que nem toda a gente nos é precisa. Como os bens e as rotinas, há pessoas que julgávamos indispensáveis e sem as quais rapidamente aprendemos a estar
E depois há os que ficam. Aqueles a quem um abraço no reencontro chega bem, sem entretantos. Dispensam-se as explicações, não são precisas as desculpas. Está tudo ali, de novo, como sempre.
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E depois há os que ficam. Aqueles a quem um abraço no reencontro chega bem, sem entretantos. Dispensam-se as explicações, não são precisas as desculpas. Está tudo ali, de novo, como sempre.
Construí, ao longo da vida, amizades a sério. Partilhei a carteira com uma amiga, que se tornou a minha primeira namorada de brincadeira (Susana, és tu, sim). Crescemos juntos. Separámo-nos, a dada altura, então em turmas diferentes, depois em escolas, cidades, países e continentes. Ainda hoje continuamos juntos, numa relação feita, às vezes, de meses de silêncio, interrompidos ocasionalmente por um e-mail curto.
Sou assim, e por isso me confesso: assumo as ausências como um “está tudo bem, não te preocupes”. E assumo que os outros assumem o mesmo. Nem sempre o fazem.
No monitor do computador vejo a foto das primeiras horas de vida da filha da Diana e do Tiago. Escrevo uma mensagem curta, respondida minutos depois.
Apesar de reais, a Diana e a Susana são também a alegoria perfeita das amizades que não se perdem, dos afectos a quem os quilómetros e a vida que nos muda nada faz. Pelo menos gosto de pensar assim. Encontro conforto em saber que ali, num regresso, terei sempre um ponto de partida. Tenho de ambas, memórias que permanecem, iguais àquelas sobre as quais escrevi em tempos.
O bem-querer que deixamos em alguém é a raiz mais sólida que podemos plantar num lugar. Em cada uma das três cidades estrangeiras nas quais vivi — e viver é, como sabem, muito mais do que morar — deixei um pouco de mim e trouxe parte de alguns alguéns. Conheci dezenas, talvez mesmo centenas, de pessoas. Tenho nomes, até perfis de Facebook (e por isso muitas fotos, algumas das quais com pouca roupa no corpo), mas tenho não mais do que uma lembrança episódica da grande parte.
Gosto muito dos croissants do Careca, mas satisfaço-me com os da Pastelaria Morabeza. Lembro-me da marginal do Seixal, mas já não dispenso a equivalente do Mindelo. Com as amizades é a mesma coisa. As circunstâncias ajudam-nos a filtrar o que fica e o que se perde.
Num e noutro lado, à partida e à chegada, prendem-nos os elos intangíveis, mais do que tudo o resto. Sim, tem-me o bom vinho tinto que o meu pai me manda regularmente e os "boxers" e "t-shirts" que a minha mãe envia sempre que encontra um portador — sem nunca errar o tamanho. Mas o que me detém mesmo em cada encomenda são as conversas ao almoço de quinta-feira no Vela Azul, com o meu mais velho, ou os silêncios maternos, sempre tão expressivos.
Os mais de cinco anos de jornada emigrante — e a dada altura os trinta anos de vida — trouxeram-me a lucidez necessária para perceber que nem toda a gente nos é precisa. Como os bens e as rotinas, há pessoas que julgávamos indispensáveis e sem as quais rapidamente aprendemos a estar. Mas os que nos fazem falta, esses, não nos deixam nunca.