Opinião de Nuno Júdice: Memória de Urbano

Um pouco mais de sessenta anos de uma intensa actividade em planos diversos, do ensino ao jornalismo, da política à intervenção cultural, fizeram de Urbano uma referência que, por motivos decorrentes da sua filiação partidária, sofreu nas décadas mais recentes um relativo apagamento público. É uma visão redutora da sua obra que importa superar e que nos permitirá encontrar um espírito que, desde o início, tem uma visão cosmopolita e moderna do mundo, enfermando aqui e ali de alguma ingenuidade ou de juízos circunstanciais que se explicam pelo modo apaixonado como o escritor se relacionava com o mundo, mas que não prejudicam a ousadia e a lógica com que é construído cada livro: uma lógica que decorre de uma ambição à Balzac de escrever a Comédia Humana do nosso povo, retratando as camadas sociais que ele estuda com o olhar do psicólogo mas também do crítico; e uma ousadia que não recua perante os aspectos mais marginais ou por vezes sórdidos de uma realidade que, no entanto, não são descritos com um intuito de abjeccionismo (qualidade tão louvada nalgum sector do nosso meio cultural) mas com uma compreensão que se aproxima da ternura, como sucede nos últimos livros de contos que, nalguns casos, serão microcontos, ou, num plano mais elaborado nos contos e novelas desde A noite roxa (1956) até As máscaras finais (2000).

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Um pouco mais de sessenta anos de uma intensa actividade em planos diversos, do ensino ao jornalismo, da política à intervenção cultural, fizeram de Urbano uma referência que, por motivos decorrentes da sua filiação partidária, sofreu nas décadas mais recentes um relativo apagamento público. É uma visão redutora da sua obra que importa superar e que nos permitirá encontrar um espírito que, desde o início, tem uma visão cosmopolita e moderna do mundo, enfermando aqui e ali de alguma ingenuidade ou de juízos circunstanciais que se explicam pelo modo apaixonado como o escritor se relacionava com o mundo, mas que não prejudicam a ousadia e a lógica com que é construído cada livro: uma lógica que decorre de uma ambição à Balzac de escrever a Comédia Humana do nosso povo, retratando as camadas sociais que ele estuda com o olhar do psicólogo mas também do crítico; e uma ousadia que não recua perante os aspectos mais marginais ou por vezes sórdidos de uma realidade que, no entanto, não são descritos com um intuito de abjeccionismo (qualidade tão louvada nalgum sector do nosso meio cultural) mas com uma compreensão que se aproxima da ternura, como sucede nos últimos livros de contos que, nalguns casos, serão microcontos, ou, num plano mais elaborado nos contos e novelas desde A noite roxa (1956) até As máscaras finais (2000).

Se Urbano se mantém no que se pode designar como um registo realista que tem no romance Bastardos do Sol (1959) um momento culminante da visão desencantada de um Alentejo visto à lupa de um olhar analítico da sociedade rural que Urbano testemunhou na sua adolescência, a experiência de viagens e de uma actividade de leitor em França quando a Ditadura o afastou da nossa Universidade, a que só regressa depois do 25 de Abril para escrever uma tese sobre um dos seus modelos literários, Teixeira Gomes, que é um marco nos estudos desse autor, dissemina-se por muitos dos seus textos. E o contacto que teve com movimentos e autores da segunda metade do século XX, desde o existencialismo que perpassa nalgum universo ligado à boémia intelectual e ao registo na primeira pessoa, buscando o fundo do espírito humano, até ao novo romance de um Robbe-Grillet (que traduziu), conferem-lhe uma dimensão nada provincial e que se inscreve na busca de processos literários sempre renovados. Curiosamente, quando se poderia pensar que, no final da sua vida, Urbano se iria repetir ou estagnar naquilo que fizera o reconhecimento da sua obra de autor comprometido, vamos pelo contrário encontrar uma constante e empenhada experimentação de formas e temáticas actuais: o romance (quase) policial de 2005, O eterno efémero, em que encontramos a introdução do email na narrativa; a novela histórica em Os cadernos secretos do prior do Crato (2007), sob a forma de um caderno autobiográfico desse frustrado herói da crise aberta com Alcácer-Quibir; uma aproximação ao fantástico em contos de A última colina (2008); e também a poesia em prosa de belos livros como Margem da Ausência (1998) ou Rostos da Índia e alguns sonhos (2005). Em verso também escreveu algumas letras de fado, e o último encontro que tive com ele, há poucos meses, foi para lhe dar (e ler porque a sua vista já não o permitia com facilidade) um posfácio para um livro de poemas que esperava publicar este ano.

E é esta imagem de um homem afável e tolerante, com quem convivi em diversos momentos, que guardo dele, desde um distante momento nas eleições de 1969, em plena Ditadura, em que o vi avançar ao longo da Avenida da República, junto ao largo de Entrecampos, com um carro da Pide a segui-lo. Não o conhecia pessoalmente, mas a coragem com que, nessa como noutras ocasiões, afrontou o salazarismo, por vezes com graves consequências para a sua vida e a sua saúde, é um dos aspectos que ligam obra e vida. Sem nunca abdicar da sua ideologia marxista e da fidelidade ao seu partido, Urbano não era um homem dogmático, e um sinal disso encontra-se na sua actividade crítica onde aquilo que punha em primeiro lugar era a qualidade estética. Mas o ponto em que, creio, ele gostará de ser lembrado, é a sua relação com o amor que percorre todos os livros, desde o amor meramente sexual, em todas as formas em que se manifesta, até ao sentimento amoroso que conduz à paixão. Neste plano, a sua obra é um catálogo de situações que retratam, como nenhuma outra obra da nossa literatura talvez o faça, talvez com a excepção do seu admirado Teixeira Gomes, essas vivências muitas vezes secretas e censuradas, e a coragem com que o faz, ultrapassando muitas vezes "a porta dos limites", será sem dúvida uma das marcas que deixa na nossa literatura e que o torna um autor a não esquecer.

Escritor