Flor do deserto
Se viajarmos ao longo da celebrada Highway One, a auto-estrada costeira que une São Francisco a Los Angeles, encontraremos na região do Big Sur um cenário paradisíaco, vagamente selvagem, mais inóspito do que o esperado, tocado por uma energia ambígua, pacífica e luminosa, mas também ameaçadora. É precisamente neste pedaço do território californiano que Charles Lloyd fixou a sua base - casa e estúdio - e é aqui que tem origem grande parte da sua música, também ela marcada por uma fascinante ambiguidade. Em Haggar"s Song, o seu mais recente registo em duo com o pianista Jason Moran, Lloyd olha para trás - Haggar é a sua trisavó, vendida como escrava aos dez anos - e compõe um álbum biográfico onde podemos encontrar os vários traços, musicais, mas também afectivos, que desenharam a sua música e a sua vida. Está lá o som inconfundível, orgânico e sensível, multidimensional, que tem vindo a metamorfosear-se lentamente desde o início dos anos 90, estão lá também as ligações ao blues e ao gospel, às músicas do mundo (nomeadamente à cultura índia), estão lá as interpretações livres e abertas de grandes clássicos do songbook norte-americano (Strayhorn, Ellington e Gershwin) e as homenagens a amigos de longa data - Levon Helm, com uma versão de I shall be released, de Dylan, e Brian Wilson, com uma versão de God only knows (Lloyd andaria na estrada e em estúdio com os Beach Boys durante o seu longo período de auto-reclusão). Mas aquilo que faz de Haggar"s Song um registo verdadeiramente especial é a intimidade e a profunda empatia com que Lloyd e Moran comunicam, abordando os temas com absoluta naturalidade e zero afectação, como se quisessem revelar o que de mais intimo, puro e profundo os compõe.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Se viajarmos ao longo da celebrada Highway One, a auto-estrada costeira que une São Francisco a Los Angeles, encontraremos na região do Big Sur um cenário paradisíaco, vagamente selvagem, mais inóspito do que o esperado, tocado por uma energia ambígua, pacífica e luminosa, mas também ameaçadora. É precisamente neste pedaço do território californiano que Charles Lloyd fixou a sua base - casa e estúdio - e é aqui que tem origem grande parte da sua música, também ela marcada por uma fascinante ambiguidade. Em Haggar"s Song, o seu mais recente registo em duo com o pianista Jason Moran, Lloyd olha para trás - Haggar é a sua trisavó, vendida como escrava aos dez anos - e compõe um álbum biográfico onde podemos encontrar os vários traços, musicais, mas também afectivos, que desenharam a sua música e a sua vida. Está lá o som inconfundível, orgânico e sensível, multidimensional, que tem vindo a metamorfosear-se lentamente desde o início dos anos 90, estão lá também as ligações ao blues e ao gospel, às músicas do mundo (nomeadamente à cultura índia), estão lá as interpretações livres e abertas de grandes clássicos do songbook norte-americano (Strayhorn, Ellington e Gershwin) e as homenagens a amigos de longa data - Levon Helm, com uma versão de I shall be released, de Dylan, e Brian Wilson, com uma versão de God only knows (Lloyd andaria na estrada e em estúdio com os Beach Boys durante o seu longo período de auto-reclusão). Mas aquilo que faz de Haggar"s Song um registo verdadeiramente especial é a intimidade e a profunda empatia com que Lloyd e Moran comunicam, abordando os temas com absoluta naturalidade e zero afectação, como se quisessem revelar o que de mais intimo, puro e profundo os compõe.
Antes, muito antes, nos anos 60, Lloyd havia conquistado fama e fortuna com um quarteto que integrava Keith Jarrett, Cecil McBee e Jack DeJohnette, e com o qual gravara o best-sellerForest Flower ao vivo no festival de Monterey. Na altura partilhava palcos e audiências com grandes bandas de rock como os Grateful Dead, Jefferson Airplane ou Santana, numa aproximação ao universo do sex, drugs & rock"n"roll que viria a revelar-se demasiado intensa. Em 1969 afasta-se e decide parar de tocar. Só alguns anos mais tarde, primeiro pela mão de Michel Petrucciani, depois pela de Manfred Eicher, da ECM, regressa à esfera pública. É precisamente esta fase, de 1989 ao final dos anos 90, que se encontra reunida na caixa de cinco CD Quartets, editada este ano para assinalar o 75.º aniversário de Lloyd e que reúne os álbuns Fish Out of Water, Notes From Big Sur, All My Relations, The Call e Canto. Se foi aqui, rodeado de cúmplices predominantemente europeus como Bobo Stenson, Palle Danielsson, Jon Christensen e Anders Jormin (Ralph Peterson e Billy Hart tocam bateria em quatro dos cinco discos), que Lloyd iniciou o seu verdadeiro renascimento artístico, é verdade também que apenas mais tarde, nas colaborações com os norte-americanos Billy Higgins, Brad Mehldau, Geri Allen, Jason Moran ou Eric Harland, depurou a música que o representa, e às suas raízes, melhor do que ninguém. Uma progressão bem audível ao longo destes cinco álbuns e cujo futuro podia antever-se em The Call e, mais particularmente ainda, em Canto.