Morte acrescentada
“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro na posse de uma choruda fortuna precisa de uma esposa.” É esta a primeira frase de um dos mais populares romances de língua inglesa, Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, publicado em 1813. Numa sondagem da BBC feita já neste século, o romance de Austen ocupa o segundo lugar nas preferências dos britânicos (o primeiro pertence à saga O Senhor dos Anéis).
Fazendo um elenco mais ou menos exaustivo dos temas abordados neste romance, podem encontrar-se referências ao dinheiro, ao casamento, a um subtil mas acutilante confronto de classes e até, pela evolução e pelas metamorfoses dos estados de alma da protagonista Elizabeth Bennet, um caminho original para uma profunda regeneração através do auto-conhecimento. Em definitivo, nenhum caso de polícia. E é aqui que entra em cena P. D. James (Oxford, 1920) a decana e a mais venerada das escritoras britânicas de policiais ainda no activo.
Confessa admiradora de toda obra de Jane Austen, a que garante regressar todos os anos, P. D. James acautelou-se nesta aventura que foi trazer a morte a Pemberley, escudando-se nas palavras da própria autora, que, no final de Mansfield Park, deixou claro: “Que outras plumas abordem temas como a culpa e a infelicidade. Eu abandono esses assuntos detestáveis assim que posso, desejosa de devolver a todas as pessoas que não cometeram faltas graves um certo conforto e pôr tudo o resto de parte.”
Abandonemos então a zona de conforto! No arranque do policial, do casamento de Elizabeth e Darcy já nasceram dois filhos. A vida decorre tranquila nos domínios de Pemberley, quando Lydia Bennet, um das quatro irmãs de Elizabeth, entra de rompante dizendo que o seu marido, o menos amado dos personagens de Orgulho e Preconceito, se encontra morto no bosque que embrulha a casa e os jardins. Wickham não está afinal morto, mas tem nos braços o cadáver do seu melhor amigo, o capitão Denny, tornando-se imediatamente o suspeito óbvio.
Descoberto o cadáver, o enredo segue nos moldes clássicos para inquérito e julgamento. P. D. James mergulha numa época em que os inquéritos policiais eram insípidos e a ciência forense era uma miríade — qualquer vestígio de sangue investigado estava longe de poder ser identificado com precisão —, as investigações se faziam por conta própria e o peso dos detectives privados em termos ficcionais ainda estava para ser inventado.
Não podendo transportar o seu detective Adam Dalgliesh para as vetustas salas de Old Bailey, James teve aqui um desafio de monta: reinventar-se dentro de um território que não é o seu sem desvirtuar o seu estilo. Ser ela própria sem macaquear o estilo Austen. Para isso, nada como ser subtil na homenagem: “Como seria de esperar, uma família com cinco filhas solteiras atrai a compaixão de toda a vizinhança, em especial quando a vila carece de outro tipo de distracções, e a situação dos Bennet era particularmente desafortunada.”
Sobre os volte-faces da intriga policial não convém acrescentar muito mais, mas há aspectos extra-investigação em que P. D. James deixa a suspeita no ar: Elizabeth e Darcy passam o livro todo a recordar-nos o quanto são felizes no casamento, mas a narrativa deixa muito pouco espaço para que acções concretas o demonstrem. Aqui e ali Elizabeth vai sendo desenhada como uma excelente dona-de-casa, perdendo alguns traços da sua independência e verve original. Tornou-se uma senhora acomodada. Já quanto a Darcy, James opta por dar-lhe alguma espessura de carácter, em contraste com os traços grosseiros, herdados de Jane Austen, de homem austero preocupado sobretudo em gerir a sua fortuna pessoal. Os mais atentos descobrirão uma evidência: os personagens masculinos são quase sempre os mais consistentes na obra de P. D. James.
E já que saímos de Pemberley e há um bosque como cenário de um crime, mas também como metáfora de uma vida cheia de mistérios frondosos como as árvores, o romance traz-nos ventos e ecos de fantasmas e vozes errantes, eremitas que se auto-exilaram. Todos juntos, relembram outra corrente, a do suspense psicológico que vai marcar a literatura britânica do século XIX e condicionar a literatura policial subsequente. Wilkin Collins é um dos seus expoentes e o seu estilo vai impregnar a revelação deste mistério.
Através de Morte em Pemberley, P. D. James relembra-nos que um bom catedrático é aquele que sabe exercer o seu mister com doses equilibradas de sapiência, humildade e criatividade.
Nota final: a janela de oportunidade que este livro abriu ao trazer de novo P. D. James para as livrarias portuguesas numa edição cuidada e muito bem traduzida por Tânia Ganho deveria, passado o efeito do título que vai estar na origem de uma série da BBC a estrear no final do ano, ser aproveitada pela Porto Editora para disponibilizar novas edições dos romances de P. D. James, um corpus indispensável da literatura policial dos últimos 50 anos. Poucos estão disponíveis no mercado português, os que o estão são difíceis de encontrar e estão mal traduzidos.
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“É uma verdade universalmente conhecida que um homem solteiro na posse de uma choruda fortuna precisa de uma esposa.” É esta a primeira frase de um dos mais populares romances de língua inglesa, Orgulho e Preconceito, de Jane Austen, publicado em 1813. Numa sondagem da BBC feita já neste século, o romance de Austen ocupa o segundo lugar nas preferências dos britânicos (o primeiro pertence à saga O Senhor dos Anéis).
Fazendo um elenco mais ou menos exaustivo dos temas abordados neste romance, podem encontrar-se referências ao dinheiro, ao casamento, a um subtil mas acutilante confronto de classes e até, pela evolução e pelas metamorfoses dos estados de alma da protagonista Elizabeth Bennet, um caminho original para uma profunda regeneração através do auto-conhecimento. Em definitivo, nenhum caso de polícia. E é aqui que entra em cena P. D. James (Oxford, 1920) a decana e a mais venerada das escritoras britânicas de policiais ainda no activo.
Confessa admiradora de toda obra de Jane Austen, a que garante regressar todos os anos, P. D. James acautelou-se nesta aventura que foi trazer a morte a Pemberley, escudando-se nas palavras da própria autora, que, no final de Mansfield Park, deixou claro: “Que outras plumas abordem temas como a culpa e a infelicidade. Eu abandono esses assuntos detestáveis assim que posso, desejosa de devolver a todas as pessoas que não cometeram faltas graves um certo conforto e pôr tudo o resto de parte.”
Abandonemos então a zona de conforto! No arranque do policial, do casamento de Elizabeth e Darcy já nasceram dois filhos. A vida decorre tranquila nos domínios de Pemberley, quando Lydia Bennet, um das quatro irmãs de Elizabeth, entra de rompante dizendo que o seu marido, o menos amado dos personagens de Orgulho e Preconceito, se encontra morto no bosque que embrulha a casa e os jardins. Wickham não está afinal morto, mas tem nos braços o cadáver do seu melhor amigo, o capitão Denny, tornando-se imediatamente o suspeito óbvio.
Descoberto o cadáver, o enredo segue nos moldes clássicos para inquérito e julgamento. P. D. James mergulha numa época em que os inquéritos policiais eram insípidos e a ciência forense era uma miríade — qualquer vestígio de sangue investigado estava longe de poder ser identificado com precisão —, as investigações se faziam por conta própria e o peso dos detectives privados em termos ficcionais ainda estava para ser inventado.
Não podendo transportar o seu detective Adam Dalgliesh para as vetustas salas de Old Bailey, James teve aqui um desafio de monta: reinventar-se dentro de um território que não é o seu sem desvirtuar o seu estilo. Ser ela própria sem macaquear o estilo Austen. Para isso, nada como ser subtil na homenagem: “Como seria de esperar, uma família com cinco filhas solteiras atrai a compaixão de toda a vizinhança, em especial quando a vila carece de outro tipo de distracções, e a situação dos Bennet era particularmente desafortunada.”
Sobre os volte-faces da intriga policial não convém acrescentar muito mais, mas há aspectos extra-investigação em que P. D. James deixa a suspeita no ar: Elizabeth e Darcy passam o livro todo a recordar-nos o quanto são felizes no casamento, mas a narrativa deixa muito pouco espaço para que acções concretas o demonstrem. Aqui e ali Elizabeth vai sendo desenhada como uma excelente dona-de-casa, perdendo alguns traços da sua independência e verve original. Tornou-se uma senhora acomodada. Já quanto a Darcy, James opta por dar-lhe alguma espessura de carácter, em contraste com os traços grosseiros, herdados de Jane Austen, de homem austero preocupado sobretudo em gerir a sua fortuna pessoal. Os mais atentos descobrirão uma evidência: os personagens masculinos são quase sempre os mais consistentes na obra de P. D. James.
E já que saímos de Pemberley e há um bosque como cenário de um crime, mas também como metáfora de uma vida cheia de mistérios frondosos como as árvores, o romance traz-nos ventos e ecos de fantasmas e vozes errantes, eremitas que se auto-exilaram. Todos juntos, relembram outra corrente, a do suspense psicológico que vai marcar a literatura britânica do século XIX e condicionar a literatura policial subsequente. Wilkin Collins é um dos seus expoentes e o seu estilo vai impregnar a revelação deste mistério.
Através de Morte em Pemberley, P. D. James relembra-nos que um bom catedrático é aquele que sabe exercer o seu mister com doses equilibradas de sapiência, humildade e criatividade.
Nota final: a janela de oportunidade que este livro abriu ao trazer de novo P. D. James para as livrarias portuguesas numa edição cuidada e muito bem traduzida por Tânia Ganho deveria, passado o efeito do título que vai estar na origem de uma série da BBC a estrear no final do ano, ser aproveitada pela Porto Editora para disponibilizar novas edições dos romances de P. D. James, um corpus indispensável da literatura policial dos últimos 50 anos. Poucos estão disponíveis no mercado português, os que o estão são difíceis de encontrar e estão mal traduzidos.