A ficção portuguesa reflecte sobre a crise que é real
Na última semana foram lançados dois romances que reflectem a crise económica portuguesa e que propõem desfechos: Despaís e Se não podes juntar-te a eles, vence-os. Conversámos com os autores, Pedro Sena-Lino e Filipe Homem Fonseca
O ambiente que a crise criou é de medo e incerteza e pôs-nos a “viver numa panela de pressão que às vezes estoira em cima dos que nos estão mais próximos e que não têm culpa de nada”, diz Filipe Homem Fonseca sobre a situação do país e sobre o seu primeiro romance. A escolha do cenário da crise foi propositada: “A partir do momento em que escolho o cenário actual, tenho que falar da crise”, diz autor de Se não podes juntar-te a eles, vence-os.
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O ambiente que a crise criou é de medo e incerteza e pôs-nos a “viver numa panela de pressão que às vezes estoira em cima dos que nos estão mais próximos e que não têm culpa de nada”, diz Filipe Homem Fonseca sobre a situação do país e sobre o seu primeiro romance. A escolha do cenário da crise foi propositada: “A partir do momento em que escolho o cenário actual, tenho que falar da crise”, diz autor de Se não podes juntar-te a eles, vence-os.
No livro tenta acabar-se com a crise instalando outra crise. Levados pelo sentimento de medo, insegurança e revolta dois desconhecidos unem-se para matar os culpados da situação actual. Planeiam um atentado que tem o objectivo de matar sem discriminação porque todos são culpados por não terem agido. A alteração do provérbio popular no título pode a princípio parecer uma afirmação de incorformismo. Ao longo da leitura, o título passará a ser uma questão, diz o autor, "se não podemos juntar-nos a eles, devemos vencê-los?". Devemos passar do extremo da passividade para o da violência?
A história é também sobre os portugueses. “Quando chegam à idade adulta, os portugueses tornam-se três tipos de gente: catastrofistas, dissidentes ou boas pessoas”, diz uma das personagens. Mas estes rótulos não são definitivos, segundo o autor. Todos temos características destes três tipos e há sempre uma que sobressai. As referências directas não são só ao povo mas também à actualidade. É frequente encontrar as personagens a falar dos feriados que já não existem, do primeiro-ministro que sugeriu que emigrássemos ou das facturas que se têm que pedir depois de beber um café. Filipe Homem Fonseca usou estas referências por considerar que mesmo que tentasse inventar outras, nunca seriam tão boas como a realidade.
“Tentei pegar na nossa realidade e construir um exemplo quase universal. Quando um banqueiro diz que vamos aguentar a austeridade, isso diz muito sobre o que estamos a viver”. A ideia do autor é que um leitor do futuro que não tenha vivido o 2013 português possa concluir que “apesar da desconfiança e do medo, as coisas podem sempre melhorar”. A reflexão sobre este momento é um dos objectivos, mas a verdadeira intenção é “conquistar o direito à atenção do leitor e permitir que ele crie uma relação emocional com o livro”.
E se fossemos todos ex-portugueses?
Despaís, de Pedro Sena-Lino, passa-se em Portugal no ano de 2023. A situação é semelhante à actual, mas há situações extremas como a tentativa de desmantelamento e venda do Mosteiro dos Jerónimos. Nesta distopia, o país enfrenta a possibilidade do seu fim. “A ideia foi construir um romance virtual em que se vivem as condições actuais com a alteração de uma variável: há um referendo que coloca a hipótese da dissolução total do Estado Português.”
A história constrói-se pelos relatos de diferentes narradores. Foi esta a forma que Sena-Lino encontrou de devolver a voz aos cidadãos anónimos, representados por Afonso, criança agora sem pátria, uma idosa com demência, um historiador, um homem do lixo, um gestor, um jornalista, um fotógrafo estrangeiro, entre outros. Para o autor, é também importante o papel da multidão que intervém com palavras de ordem ao jeito de coro grego.
Pedro Sena-lino escolheu apresentar o seu novo livro através de uma manifestação encenada no Rossio, em Lisboa, e uma mesa-redonda sobre a situação nacional. “Não gosto de apresentações tradicionais. O objectivo é desencadear a discussão a partir da obra literária”, diz, salientado que a obra de arte não pode ficar fechada em casa, mas tem que provocar discussão, ser provocadora, tanto na forma como no conteúdo.
Despaísquer um leitor inconformado e perturbado no fim da leitura, quer que o leitor se pergunte o que pode fazer para evitar o cenário extremo de crise financeira, social e de identidade nacional que o livro descreve. O cenário é apocalíptico. Os portugueses vivem no mar, em barcos chamados “Crísias” porque já não têm sítio onde viver: Portugal foi vendido. Para o gestor, um dos narradores do livro, “esta é a história de um país que foi um erro. de um país que nunca sequer deveria ter existido”.
“Depois de vermos cair o Estado-providência, questiono se o conceito instalado de Estado-Nação ainda faz sentido”, diz o autor. A personagem do historiador teoriza esta questão: “Os Estados-Nação, bem como a ideia de Estado desapareceram com o chamado caso português. Só as grandes federações, ou directórios interregionais, como os Estados Unidos ou as União Europeia, podem sobreviver.” Enquanto a nação portuguesa se desfaz, na Europa de 2023 de Pedro Sena-Lino, já a Catalunha se separou da Espanha e a Bélgica se dividiu na Flandres e na Valónia, ficando a cidade de Bruxelas sob administração directa da União Europeia.