A banalidade do mal
Uma Verdade Incómoda, do grande mestre da espionagem John le Carré (aliás David Cornwell), começa com uma acção secreta de contraterrorismo, levada a cabo por forças conjuntas americanas e inglesas, em Gibraltar. Mas o que se passa no “Rochedo” é tudo menos “limpo”: a informação deficiente, a falha nas comunicações, a má coordenação e a desorientação transformam a Operação Vida Selvagem numa “missão Rato Mickey” (nas palavras de um dos intervenientes), apanhando desprevenidos os mais calejados, incluindo um tal Paul Anderson, o agente inglês no terreno, e provocando danos colaterais, a morte de uma mulher e de uma criança muçulmanas que apenas se encontravam no lugar errado à hora errada. Passados três anos (já em 2011), “Paul” é agora Sir Kit Probyn, um diplomata, convenientemente reformado com um título, e retirado para uma velha casa na Cornualha (tal como o autor).
Entra em cena Toby Bell, um jovem e eficiente funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, determinado a expor a Operação Vida Selvagem, cujo falhanço fora avidamente camuflado por ministros e outros altos responsáveis. Com Paul/Kit, que se ressente duramente da sua ingenuidade e da sua ineficácia numa acção que custou a vida a inocentes, enreda-se cada vez mais numa teia de interesses e intenções criminosas, num infindável rol que inclui assassínio, traição e tortura.
John le Carré é exímio na forma como vai desvendando os golpes e contra-golpes, num crescendo de raiva fria e dura, de irritação e desprezo pelo rumo da política da sua terra natal e do mundo em geral. Mas se esse desdém é fortíssimo — o seu ódio visceral ao New Labour personificado por Tony Blair, mantém-se em relação aos Conservadores no poder —, tão pouco poupa os norte-americanos, embora com o cuidado de afirmar que a sua posição é a de “anti-nada”, preferindo uma análise contínua da psicologia colectiva (do Ocidente) que lhe parece, no mínimo, muito confusa. Numa rara entrevista dada em Maio deste ano à BBC, Le Carré — que não autoriza a inclusão dos seus livros nas “corridas” a prémios literários — desabafou, dizendo que, nesta obra, “há muita frustração e impaciência, principalmente em relação aos britânicos”, e enfatizando o facto de a demonização do Islão apenas ter vindo colmatar o fim da Guerra Fria que se perfilava já no horizonte, muito antes da queda do Muro de Berlim. Cinquenta anos passados sobre a publicação de O Espião que Veio do Frio, quando a espionagem parecia ser o veículo perfeito para explorar, em “ficção”, o coração e a alma de uma sociedade pós-imperial, foi-lhe necessário, apenas, mudar o nome dos vilões para continuar a traçar o mapa dos insondáveis e labirínticos desvios de homens e mulheres que não olham a meios para atingir os seus fins. No entanto, este autor magistral e surpreendente é hábil ao demarcar certas diferenças: em sua opinião, durante a Guerra Fria, existiam ainda alguns resquícios de “cavalheirismo” e uma ténue fronteira entre o Bem e o Mal, entre selvajaria e civilização, que se desvaneceram desde que o dinheiro substituiu as ideologias, tornando-se, ele próprio, uma “ideologia”. Se há alguma mensagem em Uma Verdade Incómoda é a de que, neste presente que todos vivemos, vale tudo: os serviços secretos entregaram-se aos poderes privados, os governantes são lacaios dos impérios financeiros, a “velha guarda” — personificada aqui em Jeb, o “operacional” desiludido — é negligenciável e, principalmente, a ética é um luxo que se paga muito caro.
Uma Verdade Incómoda é, para além de um história sobre os jogos de bastidores, um livro político e uma meditação sobre a desumanização do poder. Tanto a crítica inglesa como a americana mostraram-se frontalmente divididas entre louvores hiperbólicos e comentários devastadores (John Banville, como é seu hábito, classificou acintosamente o livro como “escrito de forma preguiçosa mas encantador”: não é nem uma coisa nem outra) No entanto, há que reconhecer que o desenrolar da acção é errático, a trama confusa, as personagens têm nomes incaracterísticos como Kit, Jeb, Paul ou Toby, o constante desequilíbrio entre o passado e o presente é incómodo e o velho maniqueísmo, ancorado na traição e na paranóia, faz a sua discreta mas eficaz aparição. Mas não será este o ambiente próprio da espionagem, que Le Carré conhece tão bem? O próprio afirmou que este é o seu romance mais autobiográfico e que Toby é uma versão do seu “eu” jovem, funcionário dos serviços secretos, com ideais na cabeça e uma ingenuidade devastadora.
Os leitores mais desatentos às preocupações do autor ficarão provavelmente surpreendidos com as cogitações de Toby, já quase no final do livro, quando o desenlace se aproxima e ele reflecte sobre o conceito da banalidade do mal de Hannah Arendt, referindo também a “pretensiosa afirmação de Friedrich Schiller de que “contra a estupidez humana até os deuses lutaram em vão”.
Em Uma Verdade Incómoda o desfecho não aponta para qualquer tipo de “esperança”, mas sim para a permanência abusiva de um status quo em que a violência e a ganância continuam a traçar o seu caminho. O autor é explícito na sua opinião sobre a globalização: apesar de o mundo estar mais “aberto”, no que toca à comunicação e à informação, continua a existir um fosso incomensurável e trágico entre o que os seres comuns acreditam em segredo e aquilo que lhes é transmitido. É neste espaço, onde a ingenuidade e/ou estupidez de uns é tão nociva quanto a amoralidade e a voracidade de outros, é na tensão entre a crença cega e uma ilusão que passa por verdade, que se situa a acção de mais este romance do grande senhor da “inteligência”.
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Uma Verdade Incómoda, do grande mestre da espionagem John le Carré (aliás David Cornwell), começa com uma acção secreta de contraterrorismo, levada a cabo por forças conjuntas americanas e inglesas, em Gibraltar. Mas o que se passa no “Rochedo” é tudo menos “limpo”: a informação deficiente, a falha nas comunicações, a má coordenação e a desorientação transformam a Operação Vida Selvagem numa “missão Rato Mickey” (nas palavras de um dos intervenientes), apanhando desprevenidos os mais calejados, incluindo um tal Paul Anderson, o agente inglês no terreno, e provocando danos colaterais, a morte de uma mulher e de uma criança muçulmanas que apenas se encontravam no lugar errado à hora errada. Passados três anos (já em 2011), “Paul” é agora Sir Kit Probyn, um diplomata, convenientemente reformado com um título, e retirado para uma velha casa na Cornualha (tal como o autor).
Entra em cena Toby Bell, um jovem e eficiente funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, determinado a expor a Operação Vida Selvagem, cujo falhanço fora avidamente camuflado por ministros e outros altos responsáveis. Com Paul/Kit, que se ressente duramente da sua ingenuidade e da sua ineficácia numa acção que custou a vida a inocentes, enreda-se cada vez mais numa teia de interesses e intenções criminosas, num infindável rol que inclui assassínio, traição e tortura.
John le Carré é exímio na forma como vai desvendando os golpes e contra-golpes, num crescendo de raiva fria e dura, de irritação e desprezo pelo rumo da política da sua terra natal e do mundo em geral. Mas se esse desdém é fortíssimo — o seu ódio visceral ao New Labour personificado por Tony Blair, mantém-se em relação aos Conservadores no poder —, tão pouco poupa os norte-americanos, embora com o cuidado de afirmar que a sua posição é a de “anti-nada”, preferindo uma análise contínua da psicologia colectiva (do Ocidente) que lhe parece, no mínimo, muito confusa. Numa rara entrevista dada em Maio deste ano à BBC, Le Carré — que não autoriza a inclusão dos seus livros nas “corridas” a prémios literários — desabafou, dizendo que, nesta obra, “há muita frustração e impaciência, principalmente em relação aos britânicos”, e enfatizando o facto de a demonização do Islão apenas ter vindo colmatar o fim da Guerra Fria que se perfilava já no horizonte, muito antes da queda do Muro de Berlim. Cinquenta anos passados sobre a publicação de O Espião que Veio do Frio, quando a espionagem parecia ser o veículo perfeito para explorar, em “ficção”, o coração e a alma de uma sociedade pós-imperial, foi-lhe necessário, apenas, mudar o nome dos vilões para continuar a traçar o mapa dos insondáveis e labirínticos desvios de homens e mulheres que não olham a meios para atingir os seus fins. No entanto, este autor magistral e surpreendente é hábil ao demarcar certas diferenças: em sua opinião, durante a Guerra Fria, existiam ainda alguns resquícios de “cavalheirismo” e uma ténue fronteira entre o Bem e o Mal, entre selvajaria e civilização, que se desvaneceram desde que o dinheiro substituiu as ideologias, tornando-se, ele próprio, uma “ideologia”. Se há alguma mensagem em Uma Verdade Incómoda é a de que, neste presente que todos vivemos, vale tudo: os serviços secretos entregaram-se aos poderes privados, os governantes são lacaios dos impérios financeiros, a “velha guarda” — personificada aqui em Jeb, o “operacional” desiludido — é negligenciável e, principalmente, a ética é um luxo que se paga muito caro.
Uma Verdade Incómoda é, para além de um história sobre os jogos de bastidores, um livro político e uma meditação sobre a desumanização do poder. Tanto a crítica inglesa como a americana mostraram-se frontalmente divididas entre louvores hiperbólicos e comentários devastadores (John Banville, como é seu hábito, classificou acintosamente o livro como “escrito de forma preguiçosa mas encantador”: não é nem uma coisa nem outra) No entanto, há que reconhecer que o desenrolar da acção é errático, a trama confusa, as personagens têm nomes incaracterísticos como Kit, Jeb, Paul ou Toby, o constante desequilíbrio entre o passado e o presente é incómodo e o velho maniqueísmo, ancorado na traição e na paranóia, faz a sua discreta mas eficaz aparição. Mas não será este o ambiente próprio da espionagem, que Le Carré conhece tão bem? O próprio afirmou que este é o seu romance mais autobiográfico e que Toby é uma versão do seu “eu” jovem, funcionário dos serviços secretos, com ideais na cabeça e uma ingenuidade devastadora.
Os leitores mais desatentos às preocupações do autor ficarão provavelmente surpreendidos com as cogitações de Toby, já quase no final do livro, quando o desenlace se aproxima e ele reflecte sobre o conceito da banalidade do mal de Hannah Arendt, referindo também a “pretensiosa afirmação de Friedrich Schiller de que “contra a estupidez humana até os deuses lutaram em vão”.
Em Uma Verdade Incómoda o desfecho não aponta para qualquer tipo de “esperança”, mas sim para a permanência abusiva de um status quo em que a violência e a ganância continuam a traçar o seu caminho. O autor é explícito na sua opinião sobre a globalização: apesar de o mundo estar mais “aberto”, no que toca à comunicação e à informação, continua a existir um fosso incomensurável e trágico entre o que os seres comuns acreditam em segredo e aquilo que lhes é transmitido. É neste espaço, onde a ingenuidade e/ou estupidez de uns é tão nociva quanto a amoralidade e a voracidade de outros, é na tensão entre a crença cega e uma ilusão que passa por verdade, que se situa a acção de mais este romance do grande senhor da “inteligência”.