Três hospitais podiam ter poupado 1,6 milhões só em cirurgias às cataratas

Novos dados da auditoria do Tribunal de Contas.

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Apesar de realizadas em horário normal, muitas cirurgias foram pagas em regime de horas extras Paulo Pimenta

As informações fazem parte da Auditoria às remunerações mais elevadas pagas pelas unidades hospitalares que integram o Serviço Nacional de Saúde, elaborada pelo Tribunal de Contas (TC) e a que o PÚBLICO teve acesso.

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As informações fazem parte da Auditoria às remunerações mais elevadas pagas pelas unidades hospitalares que integram o Serviço Nacional de Saúde, elaborada pelo Tribunal de Contas (TC) e a que o PÚBLICO teve acesso.

No documento, o tribunal analisou as remunerações dos 295 médicos com salários mais elevados e depois afunilou a investigação para os três hospitais que, no conjunto, tinham os cinco clínicos com ordenados mais elevados: a Unidade Local de Saúde (ULS) do Baixo Alentejo, o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio e o Centro Hospitalar do Médio Tejo. Só a ULS do Baixo Alentejo gastou 1,9 milhões em 2009 e 1,7 em 2010.

Tendo em consideração que muitos dos pagamentos considerados irregulares foram na área da oftalmologia, em que os clínicos faziam consultas e cirurgias no horário normal mas recebiam como se tivessem feito horas extraordinárias, o TC decidiu avaliar as opções tomadas pelos conselhos de administração das três unidades para perceber se “foram as mais económicas”. Assim, comparou-as com o Hospital Distrital da Figueira da Foz, que para reduzir as listas de espera para cirurgia às cataratas contratou um prestador externo, e concluiu que esta unidade conseguiu fazer o mesmo com menos dinheiro.

“Tendo em conta o número de cirurgias à catarata realizadas em meios de remuneração alternativos nas três unidades hospitalares em análise, e se, por hipótese, estas tivessem contratado serviços médicos externos ao preço que o Hospital Distrital da Figueira da Foz contratou, teriam conseguido, no triénio, uma redução de cerca de 1,6 milhões de euros”, lê-se na auditoria.

Isto porque por cada cirurgia na Figueira da Foz o hospital pagava 384,22 euros, enquanto no Barlavento Algarvio se gastava 502,06 euros, no Médio Tejo 488,11 euros e no Baixo Alentejo 500 euros (valor que, neste último caso, baixou para 450 euros em 2011).

Porém, no contraditório, o Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio considerou que a comparação é falaciosa, visto que nesta unidade a cirurgia contava com dois cirurgiões e o dinheiro era distribuído por toda a equipa, incluindo auxiliares de acção médica, quando na Figueira da Foz eram só para médico e enfermagem. Ainda assim, a este propósito, o Tribunal de Contas assegura que não se reconhecem reclamações sobre os procedimentos no Hospital Distrital da Figueira da Foz e que os auxiliares trabalhavam no horário normal.

Meio milhão a mais só em consultas
O relatório olha também para as consultas adicionais pagas à peça no Baixo Alentejo (que variaram entre os 36,4 e os 31,5 euros nos três anos) por comparação com a Figueira da Foz, que optou por pagar ao médico 37,5 euros à hora e não por consulta. O Tribunal de Contas diz que a opção pelo pagamento à hora teria permitido poupar quase meio milhão de euros.

Na mesma instituição, os oftalmologistas tinham um sistema de pontos a partir do qual recebiam remuneração extraordinária. Como os pontos das cirurgias eram atingidos até Maio ou Junho, os restantes meses eram pagos como produção adicional. Um duplo problema, visto que no primeiro semestre eram sobretudo feitas cirurgias simples, em que se operam três a quatro doentes numa hora, o que permitia superar rapidamente os pontos.

"Em 2009 e 2010, mais de 80% do total das cirurgias realizadas nesses anos e mais de 69% em 2011 foram remuneradas ‘à peça’, de acordo com a tabela do SIGIC [Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia], apesar de algumas terem sido realizadas durante o período normal de trabalho." O TC relembra que muitas destas infracções são "susceptíveis de gerar eventual responsabilidade financeira e sancionatória".

Este é apenas um dos tópicos analisados na auditoria e que mostra que, apesar das tabelas salariais, as irregularidades na remuneração dos médicos persistem e muitas das consultas e cirurgias feitas durante o horário normal em 2009 e 2010 foram pagas como se os clínicos as tivessem realizado em horas extraordinárias. Aliás, há casos de hospitais que a meio do ano já tinham atingido o número de cirurgias programadas para determinada área e que a partir daí faziam os restantes seis meses com pagamentos suplementares e mais onerosos, mas dentro do horário do clínico.

13 mil euros/mês para quase 300 médicos
De acordo com o mesmo documento, numa análise aos 295 médicos com ordenados mais elevados em todo o país, constatou-se que em 2009 e 2010 receberam, em média, 13 mil euros por mês — o que significa que, em cada ano, custaram ao todo 46 milhões de euros. Em 2011 e 2012, o Ministério da Saúde conseguiu regularizar, em parte, muitas das situações. O problema é que isso teve um preço: os médicos começaram a produzir menos e isso traduziu-se no aumento de listas de espera de algumas áreas que tinham conseguido reduções na ordem dos 40% entre 2008 e 2010.

“O agravamento dos tempos de espera que ocorreram entre 2011 e 2012 coincidiu com a redução das remunerações destes mesmos médicos”, diz o tribunal, que reforça que muita da produção podia ter continuado a ser feita no horário normal. Por seu lado, os conselhos de administração — que o Sindicato Independente dos Médicos acusa de serem os principais responsáveis pela existência de pagamentos indevidos — garantiram a este organismo que a carência de recursos humanos fez com que a única forma de garantir o acesso fosse por pagamentos extra, mas comprometeram-se a analisar melhor as sobreposições.

Já no final de Março o PÚBLICO tinha avançado em primeira mão um relatório da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) sobre as irregularidades nos pagamentos a médicos. No caso mais flagrante, o de um oftalmologista no Algarve, foram pagos mais de 1,3 milhões de euros no âmbito do SIGIC, sendo que 1,2 milhões diziam respeito a intervenções feitas durante o horário do médico. As informações apuradas pela IGAS resultaram em vários processos disciplinares que vão permitir que o Estado recupere mais de 1,3 milhões de euros. O ministro Paulo Macedo também se comprometeu a responsabilizar os conselhos de administração dos hospitais.

Do lado do Ministério da Saúde, o PÚBLICO sabe que Paulo Macedo já emitiu um despacho em que diz que as recomendações do Tribunal de Contas vão “ao encontro do trabalho que tem sido realizado pelo Governo no âmbito da saúde”, mas reconhece que algumas constatações “continuam a justificar alguma preocupação”. Assim, nesse mesmo despacho determina que tanto a Administração Central do Sistema de Saúde como a IGAS continuem a trabalhar no sentido de esclarecer a legislação em vigor e a realizar mais acções inspectivas às unidades de saúde.