Elis Regina por uma noite, Maria Rita toda a vida

Maria Rita celebrou a música de Elis Regina como filha, mulher e cantora. E as canções, património imortal, serviram de elo de ligação perfeito numa noite inesquecível.4 estrelas.

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Estava escrito nas estrelas; não nas de azul prateado que Maria Rita trouxe estampadas no seu segundo vestido branco, mas nos astros, aqueles por onde andará Elis Regina enquanto por cá ainda a cantam e ouvem: Redescobrir foi, em Lisboa como o terá sido certamente no Porto, na véspera, a remontagem peça por peça do espectáculo original. Quem o ouvira e vira em CD e DVD sabia exactamente ao que vinha. E, no entanto, há uma estranha surpresa, misturada a uma subtil comoção, ao assistir ao renascimento em palco do belíssimo repertório que Elis moldou e a filha, Maria Rita, celebra agora cantando.

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Estava escrito nas estrelas; não nas de azul prateado que Maria Rita trouxe estampadas no seu segundo vestido branco, mas nos astros, aqueles por onde andará Elis Regina enquanto por cá ainda a cantam e ouvem: Redescobrir foi, em Lisboa como o terá sido certamente no Porto, na véspera, a remontagem peça por peça do espectáculo original. Quem o ouvira e vira em CD e DVD sabia exactamente ao que vinha. E, no entanto, há uma estranha surpresa, misturada a uma subtil comoção, ao assistir ao renascimento em palco do belíssimo repertório que Elis moldou e a filha, Maria Rita, celebra agora cantando.

Em Imagem, no início, há a voz de Elis gravada que se faz ouvir enquanto Maria Rita deixa por momentos a ribalta: “Enquanto a nossa meta/ não for atingida/ Continuamos gritando o nosso canto/ Enquanto nossa música não voltar ao que é/ Nós lutamos, faz escuro mas nós cantamos/ O amanhã tá breve/ Vamos cantar logo, logo, o que é nosso/ Porque mais que nunca/ É preciso cantar o que é nosso”. E se em 1968, quando a voz de Elis foi gravada (no programa Dois na Bossa, mítica parceria com Jair Rodrigues), fazia na verdade “escuro” devido à ditadura militar, hoje há uma nebulosa claridade. Maria Rita havia de lembrá-lo mais adiante. Mas, por enquanto cantava “o que é nosso”: o Arrastão de Edu e Vinicius e essa pérola de Belchior chamada Como nossos pais, espécie de statement que a filha tomou da mãe, em duplo sentido: “É você que ama o passado e que não vê/ Que o novo sempre vem”. Soa a Elis, mas é Maria Rita. Houve um “novo” nos anos 60, há um “novo” agora ou amanhã. É ele o futuro passado.

No disco não há (pesavam no tempo e foram cortadas) mas no palco Maria Rita fala por várias vezes, a espaços, contando histórias, lembrando pormenores, explicando. Mais filha que cantora, já por aí se escreveu e ela repete a cada nova noite. Alva figura contra um fundo azul de céu (que há-de, no cenário, tomar outras cores), quase evocando a figura de um anjo, Maria Rita fala da mãe como se ela estivesse, algures, a vê-la. Para lembrar que também ela teve o seu início, os seus passos inseguros, e como depois ganhou o direito de cantar com os seus antigos ídolos – e ela lembrou três: Ângela Maria, Cauby Peixoto e Tom Jobim. Por isso, a filha-cantora pediu ao público que cantasse, dançasse, batesse palmas, mas sobretudo celebrasse a arte de Elis, sua mãe.

Vida de bailarina e Bolero de satã, a voz embebida de amores e venenos, foram prólogo para a beleza única de Águas de Março, obra maior de Jobim, e para os sentimentos diversos espraiados em Saudosa maloca, Agora tá e Ladeira da preguiça. Vou deitar e rolar (Quaquaraquaquá) e Querelas do Brasil trouxeram para a voz de Maria Rita a ironia típica de Elis, um misto de açúcar e fogo, isto antes de chegar à solenidade etérea de O bêbado e a equilibrista, que o Brasil transformou em hino da amnistia no final dos anos 70 e volta a ouvir-se nas ruas, nos protestos de hoje. Ocasião para Maria Rita falar de novo (a voz, sem música, devido à inadequada acústica da sala, soa sempre com eco, como numa nave de igreja). Para contar a história da canção, para lembrar como a mãe agia com consciência social no seu tempo e falava, apesar da ditadura. Tudo isto para lamentar que no hoje, quando o Brasil está num “momento de acordar” (aqui a assistência aplaudiu muito), os artistas que supostamente têm liberdade de falar, não falem. Mais aplausos. E Maria Rita a concluir que Elis deverá estar “bastante satisfeita” com o que está a acontecer no Brasil agora. Por isso, cantou mais duas canções que revelam a “mulher-cidadã”: Menino, o primeiro tema de Milton a soar na noite, e Onze fitas, de Fátima Guedes. Poderosas e imortais.

Virar de página, para a tempestade dos sentimentos: Me deixas louca, Tatuagem e Essa mulher. Antes desta, porém, Maria Rita veio de novo explicar-se. E contou que não foi fácil a sua relação com as canções da mãe. Em pequena, não as entendia; na adolescência, entendia e não gostava; e, finalmente, na idade adulta, quando deixou de ver os pais como super-heróis e percebeu que eram humanos, entendeu-as e gosta muito.  Como prova, cantou: Se eu quiser falar com Deus, sublime composição de Gil numa não menos sublime criação vocal de Elis. A voz tremeu, no final, e isso disse-nos tudo.

Depois veio a fase rítmica, a pulsão do rock. Alô, alô, marciano e Doce de Pimenta, ambas de Rita Lee, com Aprendendo a jogar pelo meio. E Maria Rita aproveitou para contar como Elis tinha conhecido Lee, soube que ela tinha sido presa e foi fazer um barulho dos diabos à cadeia, não porque a conhecesse, mas porque eram ambas artistas e aquilo não podia ser. Tornaram-se amigas, mas só depois (há mesmo quem diga, disse a filha de Elis no palco, que o seu nome Rita pode ter “nascido” do nome de Rita Lee).

E houve, há ainda e sempre, Milton Nascimento. Que Maria Rita recordou como o nobre compositor e cantor que Elis adorava, dizendo até que se Deus cantasse cantaria com a voz dele, admiração partilhada por Milton que tanto compôs para ela. Tinham, juntos, uma amizade fortíssima que ele não exibe por pudor e honestidade, mas que Maria Rita (que também teve a mão de Milton no início da sua carreira) entende e admira. Cantou, assim, em jeito de homenagem aos dois, Morro velho, O que foi feito devera e Maria, Maria, entoada pela assistência por entre palmas sincopadas.

Vinte e quatro canções passadas, veio então o encore: ou melhor, vieram mais quatro. Primeiro Fascinação, com a sala em delírio, depois Romaria (que muita gente cantou juntamente com ela, pelo menos o refrão: “Sou caipira, Pirapora…”) e a festiva Madalena, já com parte da assistência que quase enchia a ampla (e de algum modo desconfortável) sala do antigo Pavilhão Atlântico da Expo, hoje MEO Arena, em pé, a aplaudir de novo.

Redescobrir, de Gonzaga Jr., prolongou a festa até ela se escoar na memória, já que a canção se entranha como uma ladainha ou uma prece: “Como se fora brincadeira de roda/ Jogo do trabalho na dança das mãos/ O suor dos corpos na canção da vida/ O suor da vida no calor de irmãos.” E assim se fez música o silêncio que ficou.

Elis por uma noite, Maria Rita é já ela própria no resto da vida. A mãe quereria assim.