Arguidos no caso de cegueira no Santa Maria absolvidos
Juízes concluiram que não foi possível saber o que esteve na origem da cegueira de seis doentes em 2009.
No banco dos réus estiveram o farmacêutico Hugo Dourado e a técnica de farmácia Sónia Baptista. Os factos remontam a 17 de Julho de 2009, quando seis doentes ficaram parcial ou totalmente cegos, no Hospital de Santa Maria, depois de lhes terem sido administradas injecções intra-oculares, supostamente com o medicamento Avastin.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
No banco dos réus estiveram o farmacêutico Hugo Dourado e a técnica de farmácia Sónia Baptista. Os factos remontam a 17 de Julho de 2009, quando seis doentes ficaram parcial ou totalmente cegos, no Hospital de Santa Maria, depois de lhes terem sido administradas injecções intra-oculares, supostamente com o medicamento Avastin.
O colectivo de juízes da 7.ª vara criminal de Lisboa concluiu que não é possível saber o que esteve na origem da cegueira dos seis doentes, não tendo ficado provado que houve troca de fármacos no serviço de farmácia do Santa Maria, uma vez que a substância injectada nos olhos dos doentes nunca foi identificada.
Os juízes acrescentam que não ficou posto de parte que o produto injectado tenha mesmo sido o Avastin, mas que tenha havido contaminação antes de chegar aos doentes.
Cada ampola de Avastin custava mil euros e, por ser muito cara, tinha a direcção da unidade decidido que de cada vez que não se gastava uma ampola até ao fim era reaproveitada ficando guardadas as sobras em pequenas seringas (o chamado sistema de aliquotas). Acontece que este sistema – que foi banido depois do ocorrido – “é um método que potencia o erro humano”, disse o tribunal, e que exigiria um controlo rigoroso na preparação e rotulagem, algo que, concluíram os juízes, não acontecia. O serviço de farmácia do Santa Maria padecia “de várias fragilidades” que foram assinaladas pelas várias entidades envolvidas na investigação, desde o Infarmed, à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde (IGAS) e à Ordem dos Farmacêuticos.
Por exemplo, os juízes notaram que as ampolas de Avastin deveriam ser guardadas no frigorífico mas que ficavam largas horas à temperatura ambiente, sendo apenas escrito, a caneta de acetato, o nome do fármaco, sem o número de lotes.
As normas sobre a forma de preparação dos medicamentos em sistema de aliquotas não eram escritas e decorriam “de instruções verbais dadas pela coordenadora do serviço, Regina Lourenço”, que foi a principal testemunha da acusação.
O advogado de Sónia Baptista, Vítor Faria, respondeu aos jornalistas que “o banco dos réus estava muito vazio”, o advogado de defesa de Hugo Dourado, Ricardo Vieira, foi mais longe: “A principal testemunha da acusação é, na nossa óptica, a principal responsável”.
No acórdão que foi lido ficou claro que os magistrados consideraram que os arguidos não agiram de forma negligente, tendo caído por terra aquele que era o principal argumento da acusação: de que tinham violado o manual de procedimentos que estava em prática na altura e que ditaria as regras técnicas de preparação dos fármacos. O tribunal concluiu que não só este manual não existia à altura do ocorrido, como foi feito à pressa um suposto manual na semana seguinte aos casos de cegueira, apenas para ser fornecido à Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
Arguidos acusados de seis crimes
Durante o julgamento, o Ministério Público sustentou que houve troca de medicamentos e imputou responsabilidades criminais aos dois únicos arguidos acusados no processo. Foram acusados, cada um, de seis crimes de ofensa à integridade física por negligência por, entre outros motivos, desrespeitarem o manual de procedimentos do serviço.
Os dois arguidos declararam em tribunal que, à data dos factos, não havia qualquer manual de procedimentos no sector de produção de medicamentos e que só depois do incidente foi criado um. Ambos declararam que o manual foi elaborado uma semana após a perda de visão dos seis doentes, antecipando uma vistoria da Inspecção-Geral das Actividades em Saúde.
Numa das audiências os dois arguidos no processo destacaram a falta de supervisão e de fiscalização no serviço, onde apenas respondiam a orientações verbais da coordenadora da unidade de produção de medicamentos, Regina Lourenço, que apenas foi arrolada como testemunha de acusação.
Hugo Dourado referiu ainda que, até Julho de 2009, não havia normas na rotulagem dos medicamentos e que depois do incidente “tudo mudou drasticamente” no serviço. O número de trabalhadores alocados à produção, por exemplo, passou de cinco farmacêuticos para “30 ou 40”, disse.
A coordenadora de farmácia do Hospital de Santa Maria rejeitou qualquer responsabilidade em possíveis falhas registadas naquele dia.
Refira-se que já foram atribuídas indemnizações aos seis doentes, em 2010, num processo alternativo de resolução de conflitos que decorreu fora dos tribunais. Foi criada uma comissão de acompanhamento pelo próprio Hospital de Santa Maria, à qual coube analisar o caso, durante nove meses, e atribuir valores pelos danos causados. A Walter Bom, doente que ficou cego dos dois olhos, foi atribuída uma indemnização de 246 mil euros, a mais alta de todas.