Tão grande o génio, tão longo o delírio
O nosso século XVII literário é configurado, em larga medida, pela obra do Padre António Vieira (Lisboa, 1608 – Baía, 1697). E a noção de “obra”, neste caso, implica não apenas a vastidão e variedade dos seus escritos, mas também a dimensão pragmática que eles tiveram, o modo como serviram de instrumento fundamental a um homem de acção e pensamento. A vastidão da obra significa, neste caso, também uma dispersão por Arquivos em vários países: Portugal, Brasil, Itália, Espanha, França, México, Inglaterra (de certo modo, à imagem das deambulações do seu autor); e a variedade refere-se à longa lista de géneros e espécies que ela contempla: sermões (a parte da obra mais conhecida e com um lugar mais central no cânone), cartas, escritos políticos, textos de carácter profético, escritos sobre os judeus, sobre os índios, e também poesia e teatro. Nesta proliferação, o Padre António Vieira foi um homem verdadeiramente barroco. Há aqui, portanto, razões plausíveis (ou, pelo menos, bastante mais plausíveis do que aquelas que têm ditado uma má fortuna editorial de muitos outros clássicos da literatura portuguesa) para que a obra completa do Padre António Vieira nunca tenha sido editada. Ora, é essa tarefa por fazer que uma equipa internacional de cerca de meia centena de investigadores, dirigida por José Eduardo Franco e Pedro Calafate, promete levar a cabo, até ao final de 1914 - um projecto de edição da obra completa do Padre António Vieira em 30 volumes, distribuídos por 4 Tomos. Com o alto patrocínio da Universidade de Lisboa, a intervenção mecenática da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a produção editorial do Círculo de Leitores, o projecto foi publicamente inaugurado em Abril, com a saída de três volumes da Obra Completa: as Cartas Diplomáticas (primeiro volume da epistolografia, coordenado por Carlos Maduro) e A Chave dos Profetas (vols. V e VI do Tomo III, coordenação de Pedro Calafate, tradução do latim de António Guimarães Pinto).
Como é sabido, o Padre António Vieira esteve como diplomata em Holanda, e foi também em missão diplomática que permanceu durantes seis anos em Roma. Mas este volume inicia-se com a “carta ânua”, que na introdução ao volume, assinada por Ana Lúcia M. Oliveira e Carlos Maduro, é assim sublinhada: “Na epistolografia de António Vieira, a carta ânua ocupa um lugar de destaque: além de ser o primeiro documento conhecido do punho do jesuíta, que a escreveu com apenas 18 anos, também apresenta um importante capítulo da história da província jesuítica do Brasil – a resistência à invasão holandesa na Baía -, narrado quase no calor da hora por um dos seus participantes”.
Mas mais relevante do que a epistolografia diplomática é, neste acto inaugural da edição da obra completa do Padre António Vieira, a edição integral de A Chave dos Profetas (Clavis Prophetarum), cujo manuscrito original foi perdido. Trata-se de uma obra que pertence à série dos escritos proféticos e escatológicos de Vieira (dos quais faz parte também a História do Futuro), ao qual se dedicou ao longo de mais de cinquenta anos. Esta obra, formada por “lições” dispersas tem, em termos editoriais, uma longa e atribulada história. A grande estudiosa de Vieira, Margarida Vieira Mendes (a autora de um livro fundamental, A Oratória Barroca de Vieira, publicado pela Caminho em 1989) deu – através de uma aturada investigação - um impulso fundamental para a sua edição, mas não completou o seu trabalho porque morreu prematuramente em 1997 (acrescente-se, em jeito de merecida homenagem: Margarida Vieira Mendes é uma figura fundamental tanto nos estudos como na edição da obra de Vieira, como aliás se pode deduzir de um prefácio a esta edição de A Chave dos Profetas, assinado por João Adolfo Hansen). Foi esse trabalho de Margarida Vieira Mendes que resultou na edição do Livro III da Clavis, traduzido por Arnaldo Espírito Santo e editado pela Imprensa Nacional em 2000.
A Chave dos Profetas é, em suma, um tratado teológico-político, cujo argumento profético é a consumação futura do reino de Cristo na Terra. Este cruzamento da ordem do teológico com a ordem do profano, do espiritual com o terreno, encontra noutras latitudes e na tradição mística exemplos tratadísticos abundantes. Mas na nossa literatura e na nossa tradição é um caso à parte. Toda a questão do Quinto Império, tal como Vieira a desenvolveu, radica aqui, e as leituras algo redutoras a que tal tema tem sido sujeito devem-se certamente ao facto de haver uma falta de reflexão sobre o teológico-político na nossa tradição literária e filosófica. Apresentando, numa Introdução, “as grandes questões da Clavis Prophetarum e o seu contexto doutrinal”, Pedro Calafate escreve que “o seu ponto de partida assenta nas teses de que Cristo foi Rei, enquanto Homem, em sentido espiritual e temporal, e que Rei permanceu depois de entregar o espírito na Cruz (…) Este império, ou Reino de Cristo consumado na Terra, seria a expressão espiritual e temporal da unidade entre os homens”.
Um Padre António Vieira lido pura e simplemente em chave superficialmente barroca, com incidência exclusiva na exuberância retórica dos seus sermões (ou seja, a imagem de um Vieira que deleita com o seu engenho discursivo e representa um lugar supremo do génio linguístico português) é uma maneira de anular uma outra dimensão de grande amplitude que a sua obra contém, como podemos vislumbar em A Chave dos Profetas, por onde começou este projecto grandioso de edição da Obra Completa do Padre António Vieira.
Nota: Uma questão problemática, neste edição, levantada com ênfase por Vasco Graça Moura, é a aplicação das normas do novo Acordo Ortográfico, com o argumento de que ele está em vigor. Como neste momento são utilizadas pelo menos três normas ortográficas diferentes no espaço da língua portuguesa e não se sabe como é que vai ter fim a confusão instalada, a questão ortográfica levantada por esta edição é um sintoma eloquente da trapalhada causada pelo AO/90.
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O nosso século XVII literário é configurado, em larga medida, pela obra do Padre António Vieira (Lisboa, 1608 – Baía, 1697). E a noção de “obra”, neste caso, implica não apenas a vastidão e variedade dos seus escritos, mas também a dimensão pragmática que eles tiveram, o modo como serviram de instrumento fundamental a um homem de acção e pensamento. A vastidão da obra significa, neste caso, também uma dispersão por Arquivos em vários países: Portugal, Brasil, Itália, Espanha, França, México, Inglaterra (de certo modo, à imagem das deambulações do seu autor); e a variedade refere-se à longa lista de géneros e espécies que ela contempla: sermões (a parte da obra mais conhecida e com um lugar mais central no cânone), cartas, escritos políticos, textos de carácter profético, escritos sobre os judeus, sobre os índios, e também poesia e teatro. Nesta proliferação, o Padre António Vieira foi um homem verdadeiramente barroco. Há aqui, portanto, razões plausíveis (ou, pelo menos, bastante mais plausíveis do que aquelas que têm ditado uma má fortuna editorial de muitos outros clássicos da literatura portuguesa) para que a obra completa do Padre António Vieira nunca tenha sido editada. Ora, é essa tarefa por fazer que uma equipa internacional de cerca de meia centena de investigadores, dirigida por José Eduardo Franco e Pedro Calafate, promete levar a cabo, até ao final de 1914 - um projecto de edição da obra completa do Padre António Vieira em 30 volumes, distribuídos por 4 Tomos. Com o alto patrocínio da Universidade de Lisboa, a intervenção mecenática da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e a produção editorial do Círculo de Leitores, o projecto foi publicamente inaugurado em Abril, com a saída de três volumes da Obra Completa: as Cartas Diplomáticas (primeiro volume da epistolografia, coordenado por Carlos Maduro) e A Chave dos Profetas (vols. V e VI do Tomo III, coordenação de Pedro Calafate, tradução do latim de António Guimarães Pinto).
Como é sabido, o Padre António Vieira esteve como diplomata em Holanda, e foi também em missão diplomática que permanceu durantes seis anos em Roma. Mas este volume inicia-se com a “carta ânua”, que na introdução ao volume, assinada por Ana Lúcia M. Oliveira e Carlos Maduro, é assim sublinhada: “Na epistolografia de António Vieira, a carta ânua ocupa um lugar de destaque: além de ser o primeiro documento conhecido do punho do jesuíta, que a escreveu com apenas 18 anos, também apresenta um importante capítulo da história da província jesuítica do Brasil – a resistência à invasão holandesa na Baía -, narrado quase no calor da hora por um dos seus participantes”.
Mas mais relevante do que a epistolografia diplomática é, neste acto inaugural da edição da obra completa do Padre António Vieira, a edição integral de A Chave dos Profetas (Clavis Prophetarum), cujo manuscrito original foi perdido. Trata-se de uma obra que pertence à série dos escritos proféticos e escatológicos de Vieira (dos quais faz parte também a História do Futuro), ao qual se dedicou ao longo de mais de cinquenta anos. Esta obra, formada por “lições” dispersas tem, em termos editoriais, uma longa e atribulada história. A grande estudiosa de Vieira, Margarida Vieira Mendes (a autora de um livro fundamental, A Oratória Barroca de Vieira, publicado pela Caminho em 1989) deu – através de uma aturada investigação - um impulso fundamental para a sua edição, mas não completou o seu trabalho porque morreu prematuramente em 1997 (acrescente-se, em jeito de merecida homenagem: Margarida Vieira Mendes é uma figura fundamental tanto nos estudos como na edição da obra de Vieira, como aliás se pode deduzir de um prefácio a esta edição de A Chave dos Profetas, assinado por João Adolfo Hansen). Foi esse trabalho de Margarida Vieira Mendes que resultou na edição do Livro III da Clavis, traduzido por Arnaldo Espírito Santo e editado pela Imprensa Nacional em 2000.
A Chave dos Profetas é, em suma, um tratado teológico-político, cujo argumento profético é a consumação futura do reino de Cristo na Terra. Este cruzamento da ordem do teológico com a ordem do profano, do espiritual com o terreno, encontra noutras latitudes e na tradição mística exemplos tratadísticos abundantes. Mas na nossa literatura e na nossa tradição é um caso à parte. Toda a questão do Quinto Império, tal como Vieira a desenvolveu, radica aqui, e as leituras algo redutoras a que tal tema tem sido sujeito devem-se certamente ao facto de haver uma falta de reflexão sobre o teológico-político na nossa tradição literária e filosófica. Apresentando, numa Introdução, “as grandes questões da Clavis Prophetarum e o seu contexto doutrinal”, Pedro Calafate escreve que “o seu ponto de partida assenta nas teses de que Cristo foi Rei, enquanto Homem, em sentido espiritual e temporal, e que Rei permanceu depois de entregar o espírito na Cruz (…) Este império, ou Reino de Cristo consumado na Terra, seria a expressão espiritual e temporal da unidade entre os homens”.
Um Padre António Vieira lido pura e simplemente em chave superficialmente barroca, com incidência exclusiva na exuberância retórica dos seus sermões (ou seja, a imagem de um Vieira que deleita com o seu engenho discursivo e representa um lugar supremo do génio linguístico português) é uma maneira de anular uma outra dimensão de grande amplitude que a sua obra contém, como podemos vislumbar em A Chave dos Profetas, por onde começou este projecto grandioso de edição da Obra Completa do Padre António Vieira.
Nota: Uma questão problemática, neste edição, levantada com ênfase por Vasco Graça Moura, é a aplicação das normas do novo Acordo Ortográfico, com o argumento de que ele está em vigor. Como neste momento são utilizadas pelo menos três normas ortográficas diferentes no espaço da língua portuguesa e não se sabe como é que vai ter fim a confusão instalada, a questão ortográfica levantada por esta edição é um sintoma eloquente da trapalhada causada pelo AO/90.