A boa crítica
Como é que se critica uma crítica? É o primeiro problema que se põe numa recensão a um livro que compila essencialmente textos de crítica, sobretudo literária. Em Trabalhos de Casa, que recolhe artigos do autor para a Ler, Ípsilon e Expresso, Rogério Casanova não se furta à questão nem às respostas. E, de resto, o próprio tem consciência de que, depois de publicado, este “conjunto de, enfim, avaliações foi agora transformado em algo passível de ser avaliado.”
Num capítulo apropriadamente intitulado Manifestos, enquanto confessa uma compulsão para adquirir e ler ensaios críticos de toda a espécie (mesmo sobre temas que não lhe interessam), um perverso prazer cuja confissão compara à confidência de que se gosta muito de passar alfândegas ou de fazer a digestão, estabelece os princípios básicos para uma boa crítica: quem a faz tem de ser um bom leitor e um bom escritor, ou seja, tem de saber compreender e ter a capacidade de persuadir e interessar o leitor.
Medindo as críticas de Casanova sob esses parâmetros necessariamente subjectivos - e a subjectividade é um dos limites da crítica; aliás, o autor defende que a boa crítica também deve encontrar um equilíbrio entre a pura subjectividade (que, no limite, põe ao mesmo nível um comentário de um anónimo na Amazon e uma opinião avalizada) e as rígidas fórmulas e a aridez do discurso académico, entre a opinião pessoal e o cânone instituído ou em construção -, estas parecem perder, pelo menos em termos de gozo para o leitor, para os textos mais desgovernados que publica(va) no seu blogue Pastoral Portuguesa (reunidos num livro com o mesmo nome em 2009), ou a brincadeira Cozinho para o Cânone (receitas culinárias ao estilo de Charles Dickens, Jack Kerouac, António Lobo Antunes, e Henry James), as brilhantes “visitas de estudo” Hiperinflação Intelectual em Tupperware (sobre um festival de literatura no País de Gales) e Dezanove e Meio (acerca do chef José Avillez, quase tão bom como um ensaio de David Foster Wallace, mas com menos caracteres), as aproximações ao cinema e à política, sempre através da literatura (a adaptação de Coroliano por Raph Fiennes; a descabelada teoria da conspiração sobre a identidade de William Shakespeare professada por Roland Emmerich; a presidência de Obama desmascarada pela deterioração da sua oratória) ou dos seus anseios em relação à pós-modernidade (suscitados pela leitura de E Unibus Pluram de Foster Wallace), e até as críticas à literatura má ou muito má (Margarida Rebelo Pinto, José Rodrigues dos Santos, Yann Martel, E. L. James), em que Casanova finalmente se diverte e nos diverte, presentes em Trabalhos de Casa. É como se Rogério Casanova restringisse o seu humor (pese embora os deliciosos apartes) e talento como escritor, tentando alcançar uma seriedade supostamente necessária ao exercício crítico justo e razoável (segundos os preceitos apresentados), numa prosa mais seca e comedida (ainda que, aqui e ali, minada por anglicismos desnecessários, estranhamente mais óbvios neste tom).
Felizmente, o fenómeno torna-se menos evidente quando a paixão toma conta do crítico, por exemplo, quando este escreve sobre os “seus escritores” - Thomas Pynchon, David Foster Wallace, Roberto Bolaño, Martin Amis - embora nunca baixe a guarda e demonstre um certo ressentimento por nenhuma obra-prima poder ser perfeita (na fricção entre o objecto amado e as suas imperfeições, Casanova revela-se um crítico mais interessante). Ou quando, no capítulo Currículo e Corpo Docente, tendo como alvo outros críticos literários, se atira ao radicalismo de James Wood (de quem traduziu A Mecânica da Ficção) e Zadie Smith, à vaguidade e obsessão em hierarquizar de Harold Bloom, e celebra o ecumenismo de V. S. Pritchett (o seu escritor preferido, no sentido em que foi o que lhe deu mais prazer).
No fim de contas, e isto é completamente subjectivo, Trabalhos de Casa peca por não ser tão pessoal como deveria, por haver menos Rogério Casanova do que o desejável, por apetecer escrever, a dada altura, que o título do livro é certeiro, na medida em que há textos que se lêem como uma obrigação.
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Como é que se critica uma crítica? É o primeiro problema que se põe numa recensão a um livro que compila essencialmente textos de crítica, sobretudo literária. Em Trabalhos de Casa, que recolhe artigos do autor para a Ler, Ípsilon e Expresso, Rogério Casanova não se furta à questão nem às respostas. E, de resto, o próprio tem consciência de que, depois de publicado, este “conjunto de, enfim, avaliações foi agora transformado em algo passível de ser avaliado.”
Num capítulo apropriadamente intitulado Manifestos, enquanto confessa uma compulsão para adquirir e ler ensaios críticos de toda a espécie (mesmo sobre temas que não lhe interessam), um perverso prazer cuja confissão compara à confidência de que se gosta muito de passar alfândegas ou de fazer a digestão, estabelece os princípios básicos para uma boa crítica: quem a faz tem de ser um bom leitor e um bom escritor, ou seja, tem de saber compreender e ter a capacidade de persuadir e interessar o leitor.
Medindo as críticas de Casanova sob esses parâmetros necessariamente subjectivos - e a subjectividade é um dos limites da crítica; aliás, o autor defende que a boa crítica também deve encontrar um equilíbrio entre a pura subjectividade (que, no limite, põe ao mesmo nível um comentário de um anónimo na Amazon e uma opinião avalizada) e as rígidas fórmulas e a aridez do discurso académico, entre a opinião pessoal e o cânone instituído ou em construção -, estas parecem perder, pelo menos em termos de gozo para o leitor, para os textos mais desgovernados que publica(va) no seu blogue Pastoral Portuguesa (reunidos num livro com o mesmo nome em 2009), ou a brincadeira Cozinho para o Cânone (receitas culinárias ao estilo de Charles Dickens, Jack Kerouac, António Lobo Antunes, e Henry James), as brilhantes “visitas de estudo” Hiperinflação Intelectual em Tupperware (sobre um festival de literatura no País de Gales) e Dezanove e Meio (acerca do chef José Avillez, quase tão bom como um ensaio de David Foster Wallace, mas com menos caracteres), as aproximações ao cinema e à política, sempre através da literatura (a adaptação de Coroliano por Raph Fiennes; a descabelada teoria da conspiração sobre a identidade de William Shakespeare professada por Roland Emmerich; a presidência de Obama desmascarada pela deterioração da sua oratória) ou dos seus anseios em relação à pós-modernidade (suscitados pela leitura de E Unibus Pluram de Foster Wallace), e até as críticas à literatura má ou muito má (Margarida Rebelo Pinto, José Rodrigues dos Santos, Yann Martel, E. L. James), em que Casanova finalmente se diverte e nos diverte, presentes em Trabalhos de Casa. É como se Rogério Casanova restringisse o seu humor (pese embora os deliciosos apartes) e talento como escritor, tentando alcançar uma seriedade supostamente necessária ao exercício crítico justo e razoável (segundos os preceitos apresentados), numa prosa mais seca e comedida (ainda que, aqui e ali, minada por anglicismos desnecessários, estranhamente mais óbvios neste tom).
Felizmente, o fenómeno torna-se menos evidente quando a paixão toma conta do crítico, por exemplo, quando este escreve sobre os “seus escritores” - Thomas Pynchon, David Foster Wallace, Roberto Bolaño, Martin Amis - embora nunca baixe a guarda e demonstre um certo ressentimento por nenhuma obra-prima poder ser perfeita (na fricção entre o objecto amado e as suas imperfeições, Casanova revela-se um crítico mais interessante). Ou quando, no capítulo Currículo e Corpo Docente, tendo como alvo outros críticos literários, se atira ao radicalismo de James Wood (de quem traduziu A Mecânica da Ficção) e Zadie Smith, à vaguidade e obsessão em hierarquizar de Harold Bloom, e celebra o ecumenismo de V. S. Pritchett (o seu escritor preferido, no sentido em que foi o que lhe deu mais prazer).
No fim de contas, e isto é completamente subjectivo, Trabalhos de Casa peca por não ser tão pessoal como deveria, por haver menos Rogério Casanova do que o desejável, por apetecer escrever, a dada altura, que o título do livro é certeiro, na medida em que há textos que se lêem como uma obrigação.