O fervor da melancolia
E se o escultor Miguel Ângelo tivesse aceitado o convite do sultão otomano para desenhar uma ponte sobre as águas do Corno de Ouro e para isso tivesse viajado até Constantinopla, a “cidade que oscila entre o Leste e o Oeste”? Tendo por base uma referência encontrada numa biografia daquele génio renascentista, o francês Mathias Énard (n. 1972) escreveu o romance Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes – título inspirado na obra de Kipling, Life’s Handicap – uma reflexão acerca da natureza da criação artística e um olhar sobre o Oriente do século XVI.
Em Abril de 1506, depois de várias intrigas palacianas, que envolvem o pintor Rafael e Bramante, o arquitecto da nova Basílica de São Pedro, o escultor florentino deixa Roma agastado com Júlio II, o “papa guerreiro e autoritário”, acusando-o de não lhe pagar o que lhe prometeu pelo seu trabalho. O papa manda os seus esbirros com ordens de trazerem à força, de volta a Roma, Miguel Ângelo, que então trabalhava nas esculturas do que seria o túmulo do pontífice. É já em Florença que recebe a visita de dois frades franciscanos que são portadores de um convite do sultão de Constantinopla. Miguel Ângelo hesita. Mas a oferta de dinheiro do Grão-Turco é cinco vezes superior à de Júlio II; e dizem os frades que é trabalho apenas para um mês. Mas há um pormenor que acaba por ser decisivo para ele aceitar o convite: os frades informam-no de que Leonardo da Vinci já fizera um esboço para a tal ponte a ser construída sobre o Corno de Ouro – uma ponte que unirá as partes ocidental e oriental da capital do império otomano – mas que o sultão rejeitara o projecto por não gostar dele esteticamente. É a oportunidade do jovem Miguel Ângelo ter sucesso num projecto em que o velho Da Vinci falhara. O orgulho fala mais alto do que todos os receios. E ele decide partir. “Ele viera por causa do dinheiro, para ultrapassar Vince e se vingar de Júlio II, e eis que a tarefa o transforma, tal como a Pietà ou o David produziram nele uma metamorfose. Miguel Ângelo é modelado pela sua obra.” (pág. 86)
Em capítulos breves (nunca ultrapassando as 2 ou 3 páginas), num estilo preciso, de grande concisão e em que o ritmo das frases parecem querer sublinhar um certo fervor melancólico que paira na narração, Énard dá-nos conta das aventuras de Miguel Ângelo em Istambul, numa altura em que a cidade está cheia de gente de todas as crenças – os judeus foram há poucos anos expulsos de Portugal e de Espanha, e os mouros perderam o reino de Granada. “Que gente estranha, estes maometanos tão tolerantes para com as coisas cristãs. A população de Peras [um subúrbio de Istambul] é composta principalmente de latinos e de gregos, e tem igrejas em grande número. Alguns judeus e mouros vindos da distante Andaluzia distinguem-se pelos seus trajos. Todos os que se recusaram a fazer-se cristãos foram recentemente expulsos de Espanha.” (pág. 53)
É nesta Constantinopla de muitas línguas e culturas que Miguel Ângelo vagueia guiado pelo grande poeta Mesihi (“mestre da renovação da poesia otomana” e amigo do sultão), ele quer assimilar um pouco da cultura otomana para conseguir desenhar a ponte. Na narração de Mathias Énard – que estudou literatura persa e árabe, e que viveu durante vários anos no Médio Oriente – o poeta Mesihi, bebedor assíduo e frequentador das tabernas e bordéis dos bairros esconsos de Istambul, funciona como uma espécie de contraponto do génio renascentista. Mesihi apaixona-se pelo escultor e isso vai precipitar o final da estada de Miguel Ângelo em Constantinopla, pois, mais uma vez vítima de conspirações, vê-se obrigado a abandonar a cidade em segredo.
Mathias Énard, com este poético relato orientalista em que reflecte sobre a natureza inconstante do artista (inquietações, contradições e inseguranças), quer mostrar-nos um tempo em que as relações entre Ocidente e Oriente eram feitas de alguma tolerância (apesar das muitas guerras, um artista como Miguel Ângelo poderia ser convidado pelo Papa ou pelo Grão-Turco), e pretende ainda homenagear a literatura clássica do Médio Oriente. Uma das vozes mais singulares do romance, pelo tom bastante poético das suas aparições, é o de um ser andrógino que tenta seduzir Miguel Ângelo com a dança, com o vinho e com a poesia (Énard usa citações adaptadas de versos de ghazal, um género clássico de poesia erótica), e que surge ao escultor durante a noite, como que a justificar o começo do romance: “A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes.”
Uma nota para a excelente tradução do poeta Pedro Tamen, que transmite a precisão da escrita do autor bem como toda a carga poética que Mathias Énard quis que o romance tivesse.
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E se o escultor Miguel Ângelo tivesse aceitado o convite do sultão otomano para desenhar uma ponte sobre as águas do Corno de Ouro e para isso tivesse viajado até Constantinopla, a “cidade que oscila entre o Leste e o Oeste”? Tendo por base uma referência encontrada numa biografia daquele génio renascentista, o francês Mathias Énard (n. 1972) escreveu o romance Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes – título inspirado na obra de Kipling, Life’s Handicap – uma reflexão acerca da natureza da criação artística e um olhar sobre o Oriente do século XVI.
Em Abril de 1506, depois de várias intrigas palacianas, que envolvem o pintor Rafael e Bramante, o arquitecto da nova Basílica de São Pedro, o escultor florentino deixa Roma agastado com Júlio II, o “papa guerreiro e autoritário”, acusando-o de não lhe pagar o que lhe prometeu pelo seu trabalho. O papa manda os seus esbirros com ordens de trazerem à força, de volta a Roma, Miguel Ângelo, que então trabalhava nas esculturas do que seria o túmulo do pontífice. É já em Florença que recebe a visita de dois frades franciscanos que são portadores de um convite do sultão de Constantinopla. Miguel Ângelo hesita. Mas a oferta de dinheiro do Grão-Turco é cinco vezes superior à de Júlio II; e dizem os frades que é trabalho apenas para um mês. Mas há um pormenor que acaba por ser decisivo para ele aceitar o convite: os frades informam-no de que Leonardo da Vinci já fizera um esboço para a tal ponte a ser construída sobre o Corno de Ouro – uma ponte que unirá as partes ocidental e oriental da capital do império otomano – mas que o sultão rejeitara o projecto por não gostar dele esteticamente. É a oportunidade do jovem Miguel Ângelo ter sucesso num projecto em que o velho Da Vinci falhara. O orgulho fala mais alto do que todos os receios. E ele decide partir. “Ele viera por causa do dinheiro, para ultrapassar Vince e se vingar de Júlio II, e eis que a tarefa o transforma, tal como a Pietà ou o David produziram nele uma metamorfose. Miguel Ângelo é modelado pela sua obra.” (pág. 86)
Em capítulos breves (nunca ultrapassando as 2 ou 3 páginas), num estilo preciso, de grande concisão e em que o ritmo das frases parecem querer sublinhar um certo fervor melancólico que paira na narração, Énard dá-nos conta das aventuras de Miguel Ângelo em Istambul, numa altura em que a cidade está cheia de gente de todas as crenças – os judeus foram há poucos anos expulsos de Portugal e de Espanha, e os mouros perderam o reino de Granada. “Que gente estranha, estes maometanos tão tolerantes para com as coisas cristãs. A população de Peras [um subúrbio de Istambul] é composta principalmente de latinos e de gregos, e tem igrejas em grande número. Alguns judeus e mouros vindos da distante Andaluzia distinguem-se pelos seus trajos. Todos os que se recusaram a fazer-se cristãos foram recentemente expulsos de Espanha.” (pág. 53)
É nesta Constantinopla de muitas línguas e culturas que Miguel Ângelo vagueia guiado pelo grande poeta Mesihi (“mestre da renovação da poesia otomana” e amigo do sultão), ele quer assimilar um pouco da cultura otomana para conseguir desenhar a ponte. Na narração de Mathias Énard – que estudou literatura persa e árabe, e que viveu durante vários anos no Médio Oriente – o poeta Mesihi, bebedor assíduo e frequentador das tabernas e bordéis dos bairros esconsos de Istambul, funciona como uma espécie de contraponto do génio renascentista. Mesihi apaixona-se pelo escultor e isso vai precipitar o final da estada de Miguel Ângelo em Constantinopla, pois, mais uma vez vítima de conspirações, vê-se obrigado a abandonar a cidade em segredo.
Mathias Énard, com este poético relato orientalista em que reflecte sobre a natureza inconstante do artista (inquietações, contradições e inseguranças), quer mostrar-nos um tempo em que as relações entre Ocidente e Oriente eram feitas de alguma tolerância (apesar das muitas guerras, um artista como Miguel Ângelo poderia ser convidado pelo Papa ou pelo Grão-Turco), e pretende ainda homenagear a literatura clássica do Médio Oriente. Uma das vozes mais singulares do romance, pelo tom bastante poético das suas aparições, é o de um ser andrógino que tenta seduzir Miguel Ângelo com a dança, com o vinho e com a poesia (Énard usa citações adaptadas de versos de ghazal, um género clássico de poesia erótica), e que surge ao escultor durante a noite, como que a justificar o começo do romance: “A noite não comunica com o dia. Arde nele. Levam-na para a fogueira ao alvorecer. E juntamente com ela, a sua gente, os beberrões, os poetas, os amantes.”
Uma nota para a excelente tradução do poeta Pedro Tamen, que transmite a precisão da escrita do autor bem como toda a carga poética que Mathias Énard quis que o romance tivesse.