As vidas dos outros
A terceira longa de Catarina Ruivo não reedita o sucesso da sua estreia ("André Valente"), mas sem abandonar os territórios que têm sido habituais no seu cinema (também no segundo filme, "Daqui para a Frente") introduz-lhes umas reverberações, sobretudo colorações, que fazem de "Em Segunda Mão" uma obra bastante curiosa.
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A terceira longa de Catarina Ruivo não reedita o sucesso da sua estreia ("André Valente"), mas sem abandonar os territórios que têm sido habituais no seu cinema (também no segundo filme, "Daqui para a Frente") introduz-lhes umas reverberações, sobretudo colorações, que fazem de "Em Segunda Mão" uma obra bastante curiosa.
A coloração é fácil de explicar: é escura, nocturna, uma sombra permanente que contrasta o lado multi-colorido, de “papelão”, que predominava em Daqui para a Frente. Esta sombra é a grande protagonista do filme, figura espessa, invasiva (óptima fotografia de João Ribeiro), tanto um “ambiente” como o único tipo de luz que os protafonistas são capazes de emanar (caso de Pedro Hestnes). Não é bem um melodrama, mas anda pelas redondezas, muito noir, até pelas incidências da narrativa, como se o ponto de referência tivessem sido aqueles melodramas, sombrios e assombrados, que se faziam muito na Hollywood dos “forties”.
A história é a de um homem, solitário escritor de romances manhosos, a quem é oferecida a possibilidade de uma vida pré-fabricada - mulher e filho, emprego bem remunerado na fundação do novo sogro. Vida que não é a dele, antes a de outro. Mas enquanto isto não se deslinda, a realizadora (que se auto-cita com graça: Rita Durão, que é a mulher, tem outra vez um filho chamado “André”...) explora algo que sempre gostou de explorar: a intimidade, familiar, conjugal, que aqui resulta sempre inconclusiva, como se faltasse a convicção a cada um para o papel que tem que representar, e a intimidade fosse isso, um “teatro”. É o ponto: a personagem de Hestnes é sobretudo um espectador das vidas dos outros (as janelas e as vidraças), e o arco do filme completa-se quando, no melhor plano do filme (outra vez as vidraças, como um ecrã), se consuma o regresso a essa condição.
Foi também, como se sabe, o derradeiro filme de Pedro Hestnes, que morreu pouco depois da rodagem. Despedimo-nos dele num travelling à chuva, ele a correr atrás da câmara. Talvez um “plano-homenagem”, num filme que, visto com a memória dos outros filmes de Hestnes (e com a memória daquele cinema português, dos fins dos 80 e dos anos 90, de que ele se fez “símbolo”), se torna também numa espécie de documentário sobre ele, sobre a sua presença, sobre o cinema que ela evoca (as cenas em que contracena com Luís Miguel Cintra lembram imenso a relação entre eles no Sangue, por exemplo). Não é mérito a subestimar, neste filme sobre “as vidas do outros” que acabou por ser o último testemunho da vida de Pedro.