Da guerra civil entre os pobres
Nos locais de trabalho, começa-se a disputar a atenção do patrão porque a sobrevivência pode depender de não ser despedido
Os tempos não vão de feição. Não falo apenas da violência ideológica que impregna o purismo monetarista e a destruição de todas as formas de contrato social, que rouba o chão às pessoas, expropriando-as de qualquer possibilidade de mapear o futuro.
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Os tempos não vão de feição. Não falo apenas da violência ideológica que impregna o purismo monetarista e a destruição de todas as formas de contrato social, que rouba o chão às pessoas, expropriando-as de qualquer possibilidade de mapear o futuro.
Falo também da tristeza, do ensimesmamento, do recuo para o silêncio da casa, do resmungo entre dentes, da difusa sensação de culpa (andamos a viver acima das possibilidades…), da omnipresente chantagem e acima de tudo do medo.
Falo ainda dessa terrível guerra civil que se vem travando entre os mais pobres e que os governantes, às várias escalas (nacional, europeia, global), vêm promovendo com êxito.
Um sociólogo, José Madureira Pinto, chamou-lhe há muitos anos «anomia implosiva», uma espécie de explosão para dentro, sem criar laços solidários com outros: para dentro da própria pessoa (suicídio, mutilações de personalidade ou identidade, auto flagelação) ou da própria classe social (guerra latente ou aberta entre os pobres).
O habitante do bairro olha para o vizinho com desconfiança e por vezes acidez ou mesmo ódio, porque acha que os cem ou duzentos euros que ainda recebe do rendimento social de inserção ou do subsídio de desemprego são fruto de uma qualquer fraude manhosa.
Nos locais de trabalho, começa-se a disputar a atenção do patrão porque a sobrevivência pode depender de não ser despedido. Nos supermercados, vigiam-se uns aos outros, para apanhar o ladrão em flagrante e infligir-lhe vergonha, dano e pena. Estava a passar com a minha mãe de carro junto a um desses estabelecimentos quando deparo com um adolescente em fuga. Não mais de 14 anos, roupa de rua, boné ao contrário e o pavor estampado no olhar porque estava prestes a ser agarrado. No seu encalço dois polícias que, mal o alcançam, lhe distribuem fartas bofetadas e o derrubam com um toque certeiro do cassetete nas pernas.
Perante a insistência de uma violência desnecessária, protestei. No fundo da rua, uma pequena multidão de empregados do supermercado e de transeuntes formava uma compacta claque de apoio à enérgica ação policial. No automóvel em frente ao meu, uma família de aparência humilde vituperava contra a minha atitude: “Você não percebe que o puto roubou?” Andamos na caça do pequeno ladrão e a destruirmo-nos uns aos outros. Assim, não nos aperceberemos da galinheira em que nos transformamos, com a raposa lá dentro, de dentes afiados e olhar cintilante.