Adoptar para além do romantismo

Com ou sem crianças, as relações românticas e sexuais já não são vividas como eram há 50 anos (e felizmente!)

Foto
DR

As várias propostas de lei apresentadas ao nível da (co-)adopção entre pessoas do mesmo sexo apresentam, sem excepção, o mesmo problema: são de uma estreiteza conceptual que significa mais uma ronda de discriminações e de compromissos ideológicos com o sistema que se está a tentar superar e que não combate os problemas de base.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

As várias propostas de lei apresentadas ao nível da (co-)adopção entre pessoas do mesmo sexo apresentam, sem excepção, o mesmo problema: são de uma estreiteza conceptual que significa mais uma ronda de discriminações e de compromissos ideológicos com o sistema que se está a tentar superar e que não combate os problemas de base.

Nomeadamente, e num paralelo perfeito às famílias ditas “naturais”, todas as propostas existentes caem no erro de anexar relações de parentalidade (entre crianças e adultos) a relações de romantismo ou de sexo (entre duas pessoas adultas). Ou seja, fundamenta-se a questão da procriação e da adopção ainda em função daquilo a que Michel Foucault chamou o “dispositivo de aliança”, baseado nas relações de sangue (e, grosso modo, no casamento) como legitimadoras das relações psico-afectivas permissíveis entre adultos e crianças. O que só fazia sentido numa sociedade sem divórcio; e ainda se assegurava a transmissão de propriedade pela linha patriarcal (!).

Porém, actualmente – e isto não vai espantar ninguém – os casamentos e afins relações acabam. Com ou sem crianças, as relações românticas e sexuais já não são vividas como eram há 50 anos (e felizmente!). Criou-se a reprodução medicamente assistida. Temos crianças e jovens à espera de ser adoptados.

Um resultado, entre outros, é este caso perfeitamente corriqueiro que vos apresento – tão corriqueiro que até vou ser heterossexista. O Manuel e a Maria conhecem-se e casam-se. Têm um filho, do qual gostam muito. Passado alguns anos, divorciam-se; como a relação acabou sem grandes mágoas, a custódia é partilhada entre ambos. Com o andar do tempo, tanto o Manuel como a Maria acabam a entrar em novas relações amorosas, com pessoas que também gostam e cuidam activamente do filho do Manuel e da Maria.

Parece-vos bem? A mim também pareceria, não fosse um detalhe: os novos companheiros do Manuel e da Maria não têm direito a que se lhes reconheça legalmente a sua relação de parentalidade com o jovem. Mais: se/quando essas novas relações amorosas terminarem (e por causa dessa ruptura), há uma elevada possibilidade de que as relações (de parentalidade) com o filho do Manuel e da Maria também terminem, sem apelo nem agravo, ou sequer defesa possível. Aposto que várias das pessoas que me lerem terão sido ou conhecerão pessoas que foram educadas por alguém que não era o pai ou a mãe biológicos, e nem por isso são traumatizadas ou psicologicamente perturbadas.

Só desvinculando a parentalidade dos moldes da relação romântica adulta (monogâmica!) e de direito de sangue – abrindo-a à possibilidade de ser partilhada por mais de duas pessoas (como aqui, no caso de uma família LGBT; ou no caso de famílias poliamorosas, investigadas aqui e aqui), e à possibilidade de se reconhecer que adultos que já não estão ou nunca estiveram numa relação amorosa podem, ainda assim, ter uma relação de parentalidade com crianças e jovens – poderemos esperar ter algum impacto duradouro na reformulação de uma das mais ossificadas estruturas interpessoais existentes na nossa sociedade.