Yuri, o desocupado resignado

Melhores dias virão para os imigrantes que todos somos ou, pelo menos, fomos. Sim, já todos o fomos — quanto mais não seja naquela época erma em que os trisavós dos nossos trisavós acharam por bem agarrar na trouxa

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minimalniemand/Flickr

Apresentação quinzenal para efeitos de subsídio de desemprego. Estou sentado no banco acolchoado à porta do Gabinete de Inserção Profissional de uma escola secundária das minhas bandas. Distraído com a garotada que desfila à minha frente, sou arrancado dos meus pensamentos por um tipo encorpado que aterra com violência ao meu lado. A dureza que acarreta nos ombros e peito largos é suavizada pela translucidez do verde-mar que traz dentro dos olhos. Falou-me sem que nos conhecêssemos.

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Apresentação quinzenal para efeitos de subsídio de desemprego. Estou sentado no banco acolchoado à porta do Gabinete de Inserção Profissional de uma escola secundária das minhas bandas. Distraído com a garotada que desfila à minha frente, sou arrancado dos meus pensamentos por um tipo encorpado que aterra com violência ao meu lado. A dureza que acarreta nos ombros e peito largos é suavizada pela translucidez do verde-mar que traz dentro dos olhos. Falou-me sem que nos conhecêssemos.


O “Yuri” (inventei o nome, não tive tempo de lho perguntar — peço desculpa por tamanha falácia) está em Portugal há 13 anos, garante. Ucraniano, veio para Portugal em 2000 “quando era bom, porque a gente desenrascava-se. Dava até para ir de férias, comer bem e ainda mandar dinheiro para casa. Agora? Agora é uma miséria! Andamos quase a pagar para trabalhar. Até há empregos, ‘tás a ver?, mas é tudo muito caro. Sou motorista, preciso de pagar 70 euros pelo tacómetro mais 200 para renovar a carta profissional agora quando fizer os 40 [anos, leia-se]. Assim não dá.”


Tentei fazer-lhe perguntas, mas ele não deixou. Contou, assim mesmo, o que eu queria saber. “A terceira parte da minha vida aconteceu toda em Portugal. Depois disto acho que vou ficar em casa dois anos a descansar e a tratar da mulher e dos filhos. Prefiro estar em casa a receber 410 euros a estar a trabalhar como escravo e receber 600. O meu patrão fazia-me trabalhar 16 horas seguidas e só me pagava como se eu tivesse feito o serviço de oito. Não pode ser assim. Isto é escravatura.”


“Ainda fui uns tempos para a Letónia. Trabalhei a montar móveis, tirava três mil euros por mês - muito bom! Depois a Europa caiu nesta crise e acabou tudo. Está tudo parado.”


Com um ritmo muito próprio, sem espaços para vírgulas, o Yuri lá ia continuando o seu monólogo. “Se calhar até vou ter oportunidade de trabalhar em Inglaterra, como segurança. Se for assim, vou. Senão, fico cá.”


Fomos interrompidos pelo chamar da minha senha. Quando voltei só tive tempo de apertar a mão àquele sujeito, agradecido por me ter contado a sua história de vida. O diálogo mudo mostrou a convicção que ambos tínhamos de que nunca mais poríamos a vista um no outro. Ainda assim, sei que verei o Yuri todos os dias, nos rostos de qualquer imigrante, esse heróis que passam a vida a deambular, após uma (ou muitas mais) viagem difícil e de combate contra preconceitos em nome de uma vida melhor. Também eles, agora se vê, não escapam às malhas da falta de emprego — é sofrimento a dobrar.


Melhores dias virão para os imigrantes que todos somos ou, pelo menos, fomos. Sim, já todos o fomos — quanto mais não seja naquela época erma em que os trisavós dos nossos trisavós acharam por bem agarrar na trouxa e fazer por encontrar paz e alimento numa terra longínqua.