Da Rússia, com desencanto
Nas páginas de "Limonov", livro que ganhou o prémio Renaudot, acompanhamos a vida de Limonov, que foi delinquente, poeta, amante de mulheres famosas, exilado nos EUA
Nunca fui à Rússia, e quanto mais adio a viagem mais temo que a Rússia real não corresponda à Rússia mítica que tenho na cabeça: a que foi vivida e inventada por Pushkin, Tolstói, Dostoiévski, Gogol, Tchekhov, Akhmatova, Bulgákov, Eisenstein, Tarkovski e tantos outros. E, infelizmente, o livro "Limonov", de Emanuel Carrère, publicado em Portugal pela Sextante Editora, em nada contradiz esse mito, ao narrar a vida do escritor e político russo, Eduard Limonov, o líder do partido nacional-bolchevique russo.
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Nunca fui à Rússia, e quanto mais adio a viagem mais temo que a Rússia real não corresponda à Rússia mítica que tenho na cabeça: a que foi vivida e inventada por Pushkin, Tolstói, Dostoiévski, Gogol, Tchekhov, Akhmatova, Bulgákov, Eisenstein, Tarkovski e tantos outros. E, infelizmente, o livro "Limonov", de Emanuel Carrère, publicado em Portugal pela Sextante Editora, em nada contradiz esse mito, ao narrar a vida do escritor e político russo, Eduard Limonov, o líder do partido nacional-bolchevique russo.
Isso mesmo: nacional-bolchevique; um partido que defende a fusão de comunismo e nazismo, e tem como emblema a foice e o martelo com as cores da bandeira nazi. E é tributo à singularidade russa, e ao talento narrativo de Carrére, que Limonov e o seu partido não nos afigurem como repelentes, mas antes fascinantes, e quase benignos, no panorama político daquele país.
Nas páginas deste livro que ganhou o prémio Renaudot acompanhamos a vida de Limonov, nascido numa pequena cidade industrial da Ucrânia durante a II Guerra Mundial, que foi delinquente, poeta, amante de mulheres famosas, exilado nos EUA, onde conviveu com artistas, políticos e milionários, quase assassinou um dirigente da ONU, foi sem-abrigo, seduziu "dealers" negros — o que levou o editor francês a intitular um dos seus livros: "Os poetas russos gostam deles negros e grandes" —, foi uma celebridade literária em França, esteve na Guerra das Balcãs do lado sérvio, casou com uma ninfomaníaca, fundou um jornal subversivo e um partido na Rússia, apoiou os conservadores comunistas contra Gorbachev e Ieltsin, foi encarcerado por Vladimir Putin numa prisão de alta segurança, libertaram-no e hoje dirige o seu partido enquanto namora mulheres com um terço da sua idade. E o próprio Limonov relatou tudo isto nos seus livros autobiográficos com uma frontalidade impiedosa. A mesma frontalidade que o levou a responder a Carrère, quando este certa vez lhe disse que Limonov tinha tido uma vida apaixonante: "Pois, uma vida de merda, isso sim."
E é. Uma vida apaixonante — sórdida nos pormenores, espantosa no extremismo, tocante na lealdade e desespero, inquietante na crueldade e pessimismo. Uma vida que faz pensar em todas as diferentes vidas que podem caber numa única vida, mas como mesmo assim todas essas vidas podem continuar a parecer derrotas, como escreveu George Orwell, para quem teve de as viver por dentro.