Progresso, justiça, pão, habitação
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Embora o debate em Portugal e na Europa esteja polarizado entre essas duas posições, não podem ser essas as nossas escolhas, sob pena de no processo perdermos o que nos deve mover, ou seja, nós as pessoas, nós os cidadãos, o nosso futuro.
A Europa continua em crise e as crises sucedem-se a toda a nossa volta. Talvez, como sugere Rosalind Williams, tenhamos que encarar o progresso não como uma marcha triunfal mas mais como uma série de redes de crises que nunca são totalmente resolvidas e contra as quais temos de lutar independentemente de onde quer que elas surjam. Essas crises não são resolúveis apenas com os instrumentos herdados do passado, pois interligam-se, são financeiras, económicas, sociais, políticas, ambientais e, por vezes, humanitárias ou mesmo de cariz militar.
Como sabemos, a actual Primavera de 2013 não é ainda comparável às primaveras de 2011 e 2012, aquelas que entre outros juntaram a primavera árabe, os protestos por habitação condigna em Israel, pela mudança de sistema politico através da indignação espanhola e portuguesa, pela mudança no sistema educativo no Quebec e no Chile ou pelo fim da desigualdade para os 99% desencadeados pelos movimentos Occupy no mundo anglo-saxónico.
Nesta Primavera de 2013 temos na Turquia o que parece ser um movimento oriundo da metade do país que não votou em Erdogan na última década em conjunto com os que votaram, unindo-os o receio de uma deriva para uma política centrada na permanência no poder ao invés de uma política centrada no servir as aspirações dos cidadãos.
Mas temos também um fenómeno de revolta em curso na Europa, talvez ainda menos visível a olho nu, mas presente. Uma revolta de características particulares, mas que não deixa de ser analiticamente importante para todos os europeus e para os portugueses em particular.
Que revolta é essa? É uma revolta de governos, não envolvendo todos, é certo, mas isso não a torna menos importante devido ao factor contágio. Mas também é uma revolta palaciana entre comissários europeus com diferentes visões e, mesmo, um mal-estar face a atitudes já tomadas e que se revelaram erradas - e cujo custo político alguns comissários não estão dispostos a pagar em particular quando se aproximam eleições europeias.
Para compreendermos melhor o que se passa temos de aceitar dois pressupostos, hoje já profusamente difundidos: nem as entidades internacionais (CE, FMI, BCE) são donas de soluções testadas; nem há já hoje qualquer convicção partilhada entre os seus membros de que o que é por si sugerido, como política económica e financeira, tenha obrigatoriamente de produzir resultados.
Na Primavera de 2013 parecemos ter atingido uma nova etapa da gestão da crise financeira e fiscal do euro e que é caracterizada pela assunção pública da quebra de confiança entre um número significativo de Estados e as entidades internacionais (CE, FMI, BCE) - mais significativo ainda pelo facto de os Estados envolvidos não serem aqueles formalmente intervencionados.
Num primeiro momento, desorientados por uma crise cujos fundamentos e implicações desconheciam, os Governos de então e os futuros protagonistas políticos nacionais - ávidos de ajuda e financiamento - aceitaram e negociaram diferentes memorandos, sempre enquadrados pela visão expressa pelos organismos da troika e pela confiança de que eles (CE, FMI, BCE) saberiam o que estavam a fazer - em particular porque eram "especialistas", embora nunca tivesse havido um evento similar ao sucedido na zona euro do qual se pudessem tirar ilações.
Essa confiança, ou crença, levou a um estranho, mas compreensível, encontro de vontades, entre quem desejava ser ajudado e ser visto pelos seus concidadãos como quem venceria as adversidades da crise, e técnicos internacionais que viam no sucedido a possibilidade de abandonar os seus gabinetes, testar teorias na prática e encontrar governantes eleitos que depositavam em si a confiança na solução dos problemas.
É claro que nada correu como planeado, pois a realidade é mais complexa do que os modelos e a sua aplicação depende tanto de conhecimento técnico, como de conhecimento baseado na experiência, de capacidades políticas e de rasgos de génio sobre como e quando arriscar ou esperar.
Os passos descritos nos parágrafos anteriores trouxeram-nos até aqui, ao final da Primavera de 2013, uma Primavera que parece, curiosamente, poder vir a breve trecho ser apropriada pelos povos europeus. No fundo, são os Governos nacionais não formalmente intervencionados que antecipando revoltas (seja no voto contrário em eleições, seja pela necessidade de gerir a possibilidade de descontentamento prolongado face às instituições) atacam as posições e recomendações das entidades internacionais.
Mas são, porventura, mais do que simples reacções dos governos nacionais europeus. Pois, como relembrava recentemente o Presidente francês, se os governos não puderem decidir que políticas seguir para atingir objectivos como os do défice - mesmo que estes sejam produto de acordos na União - o que restará da soberania dos Estados? E eu acrescentaria, que será do poder dos governos?
Curiosamente, não é apenas a França que se posiciona deste modo. A Alemanha também respondeu de modo semi-irado às recomendações do FMI sobre a sua política económica e fiscal, sobre a emigração, sobre a maior incorporação de mulheres no mercado de trabalho ou sobre os riscos do sector bancário alemão, com a sua exposição a sectores instáveis como o marítimo, imobiliário internacional e activos estrangeiros.
E a lista das últimas semanas poderia estender-se aos espanhóis e italianos na sua política dúplice de dizer sim sempre que necessário e não aplicar sempre que tal possa colocar em causa o interesse nacional. Ou ainda a Holanda, que manifestou publicamente a recusa de baixar ainda mais o défice por entender que tal poderia colocar em causa a protecção social e os rendimentos dos cidadãos.
No geral algo está a mudar, mas talvez não pelos melhores motivos. Ou seja, não parece ser o interesse dos cidadãos que faz com que esta movimentação dos governos ocorra -e, aliás, os resultados desta mudança podem tornar-se bastante negativos para a Europa.
Mas talvez, também, se possa argumentar que se a Europa é isto que temos vindo a observar talvez não valha a pena salvar a Europa - o que, por sua vez, também constitui um princípio para podermos mudar para algo que achemos que valha a pena construir.
Os governos estão a revoltar-se contra os organismos internacionais com o intuito de manter o seu poder. Pois, como o poder de base democrático está assente em eleições nacionais, esta é uma "revolta" dirigida à manutenção do status quo nacional.
O que, dada a actual situação, poderá ser positivo, pois obriga os governos a distanciarem-se da embriaguez induzida pelas discussões e propostas assentes nas escolhas de "Austeridade vs. Crescimento", abrindo, assim, espaço para de novo se olhar para os cidadãos enquanto pares dos governantes.
Tanto em Portugal como na Europa precisamos de nos libertar desse sequestro intelectual promovido pela eterna necessidade do discurso político em gerir opostos porque se não, de tanto centrarmos a nossa atenção nos meios e não nos fins últimos da governação, perderemos as pessoas.
Não podemos manter eternamente - e ainda menos em tempos de crise - uma agenda politica centrada na luta entre "Austeridade vs. Crescimento" porque ela promove essencialmente a centralidade dos interesses dos Estados e das empresas e só indirectamente estabelece uma ligação à melhoria das condições de vida dos indivíduos.
Precisamos urgentemente de uma agenda política centrada na autonomia dos indivíduos e na liberdade de criar, realizar e ter uma vida melhor. E na Europa muitos já o perceberam – só que, infelizmente para todos nós todos, perceberam-no tarde.
Após cinco anos de diariamente repetirmos as virtudes e bondades da consolidação orçamental e das reformas estruturais centradas nas vantagens para o Estado ou para as empresas, necessitamos de nos centrarmos na melhoria das vidas dos indivíduos e das sociedades europeias.
E, portanto, precisamos de nos centrar em questionar os povos da Europa sobre qual é o seu desejo de progresso económico para os seus países e as suas vidas pessoais ou o que importa conquistar em termos de maior justiça perante a desigualdade de rendimentos e perante as desigualdades de tratamento por parte das instituições do Estado. Mas também questionar como numa sociedade de risco podemos adquirir segurança, tendo empregos que permitam aspirar à segurança de ter que comer, onde habitar e de desejar sempre melhor.
É isto que nos faz humanos, que nos faz vencer a adversidade e não a austeridade ou o crescimento, que mais não são do que instrumentos políticos e que pouco ou nada dizem às nossas vidas.
A política parte do que faz sentido para as pessoas, não do que nas pessoas pode fazer sentido para a política.
Porque os instrumentos e as instituições de ontem nunca conseguem resolver os problemas por si criados, temos de pensar o futuro e colocar em causa o passado para poder obter respostas.
Qualquer que seja a visão do futuro que queiramos adoptar, só há futuro para lá da austeridade e do crescimento. Só há futuro se soubermos que progresso, que justiça, que pão e habitação são as nossas.
Gustavo Cardoso é Directeur d'études associés da Fundação Maison des Sciences de L'homme e Professor do ISCTE-IUL