Herdeiros que venderam pintura protegida a Pais do Amaral sentem-se "lesados" pelo Estado
Família diz que preço de venda a Pais do Amaral foi condicionado pelo facto de a obra não poder sair de Portugal.
A venda ao empresário Miguel Pais do Amaral, depois disso, viria a resultar na saída da valiosa obra para França em 2012, como o PÚBLICO noticiou, para perplexidade deste grupo de herdeiros, que se sente “lesado” pela aparente alteração da posição do Estado perante a pintura.
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A venda ao empresário Miguel Pais do Amaral, depois disso, viria a resultar na saída da valiosa obra para França em 2012, como o PÚBLICO noticiou, para perplexidade deste grupo de herdeiros, que se sente “lesado” pela aparente alteração da posição do Estado perante a pintura.
Como o PÚBLICO noticiou terça-feira, a Virgem com o Menino, Santo Emídio, São Sebastião, São Roque, São Francisco de Assis e o Beato Tiago da Marca (1487), do mestre veneziano Crivelli (1430-1495), saiu de Portugal em 2012 com uma oferta de compra de cerca de três milhões de euros.
A Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), à época dirigida por Elísio Summavielle, terá dado um parecer negativo ao pedido de saída da pintura de Carlo Crivelli devido à sua protecção legal, disse ao PÚBLICO Summavielle. Quando subiu à tutela, a Secretaria de Estado da Cultura do Governo de Passos Coelho, então encabeçada por Francisco José Viegas, terá tomado a decisão que possibilitou esta saída. Viegas disse ao PÚBLICO que este “foi um processo normal”.
Clara Vaz Pinto, um dos membros da família que vendeu a pintura a Pais do Amaral e directora do Museu Nacional do Traje, disse esta quarta-feira ao PÚBLICO estar “a acompanhar o caso, como qualquer cidadão interessado em perceber quais são os argumentos técnicos” por trás de tal decisão. Outra fonte da família vai mais longe e reage “pessimamente” ao tratamento diferenciado dado pelo Estado ao pedido do conhecido empresário. “Sentimo-nos completamente lesados, sabemos que vale muito mais” do que a quantia pela qual entregaram a pintura a Pais do Amaral — um “valor muito, muito inferior” aos três milhões de euros oferecidos em Paris.
A perplexidade de um outro membro da família ouvido pelo PÚBLICO prende-se com o facto, de há cerca de cinco anos, os então dez herdeiros terem feito uma proposta escrita ao Estado para que comprasse o quadro: “O Estado português respondeu que não tinha interesse na pintura, pelo que pedimos um levantamento do arrolamento [protecção legal], que foi recusado. Só no seguimento disso é que decidimos vender a um particular em Portugal”. Na altura, a tutela era o Ministério da Cultura, dirigido até final de Janeiro de 2008 por Isabel Pires de Lima e depois por José António Pinto Ribeiro, no âmbito do XVII Governo Constitucional, o primeiro de dois Governos de José Sócrates (PS).
Os motivos da família para a venda da histórica pintura, uma tábua de 1,62x1,07m, dizem as várias fontes da mesma, prendiam-se com o grande número de herdeiros. Mas “a opção era obviamente que a peça ficasse em Portugal”, diz um desses familiares, frisando Clara Vaz Pinto que o preço de venda a Pais do Amaral “foi feito tendo por base que era uma obra classificada, protegida e que não pode sair de Portugal”. No mercado internacional, sendo difícil de estimar qual o valor de uma peça desta relevância histórica e qualidade técnica, por não existirem muitos exemplares equiparados a ir à praça, a pintura teria um valor bastante elevado.
Clara Vaz Pinto garante que a venda a Pais do Amaral foi feita “através de processos absolutamente legais, com comunicação ao Estado português — que teve a oportunidade de adquirir a pintura”. Pais do Amaral era um de vários compradores interessados e o empresário “foi o que se manteve até ao fim e fez a melhor oferta”, valor não revelado ao PÚBLICO, num processo intermediado pela leiloeira Christie’s, segundo a família. “Não conheço qualquer contacto formal do Estado, da tutela, manifestando interesse na compra da peça”, diz Clara Vaz Pinto, que ressalva que, informalmente, entidades como a DGPC sempre mostraram grande interesse na peça.
A história desta pintura, que tem já seis séculos, tem alguns capítulos menos claros. Sabe-se que foi vendida no século XIX num antiquário em Roma, mas não quem a comprou. Caetano Andrade de Albuquerque Bettencourt, que nasceu em Roma em 1844 e morreu em Ponta Delgada, teve cinco filhos, tendo o mais novo “trazido a peça para Lisboa para restauro”. Foi ele que “salvou o quadro”, frisa Clara Vaz Pinto. Solteiro e sem filhos, morreu na década de 1980 em Lisboa, tendo deixado a obra aos seus primos. Entre eles figurava Francisco Hipólito Raposo, grande especialista em antiguidades e conhecido divulgador na área do património.
A Virgem de Crivelli já foi exposta no Museu Nacional de Arte Antiga em 1972 e longamente restaurada no Instituto José de Figueiredo, em Lisboa.