O Mary Rose já não é só o navio de guerra que naufragou – agora é também um museu

Há 30 anos, o navio almirante de Henrique VIII voltou a estar em doca seca e agora tem um museu à volta, com canhões, moedas de ouro, instrumentos de navegação e até tabuleiros de gamão. A casa nova parece uma arca de Noé saída de um livro infantil e abre nesta sexta-feira.

Fotogaleria

Abre nesta sexta-feira para mostrar aos visitantes como se vivia a bordo da sofisticada embarcação da Marinha Real quando a Inglaterra era governada pelo mais absoluto dos seus monarcas, um homem que passaria à história, em grande parte, por ter virado as costas à igreja de Roma (foi o primeiro líder da Igreja Anglicana) e pelas suas muitas mulheres (casou seis vezes, fora as amantes).

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Abre nesta sexta-feira para mostrar aos visitantes como se vivia a bordo da sofisticada embarcação da Marinha Real quando a Inglaterra era governada pelo mais absoluto dos seus monarcas, um homem que passaria à história, em grande parte, por ter virado as costas à igreja de Roma (foi o primeiro líder da Igreja Anglicana) e pelas suas muitas mulheres (casou seis vezes, fora as amantes).

O novo museu foi construído à volta do navio que esteve no fundo do mar mais de 400 anos e inclui uma colecção de 19 mil objectos recuperados dos destroços, retirados da água há 30 anos. Embora levante inúmeros desafios técnicos, o seu estado é de tal forma bom que leva os investigadores a referirem-se ao casco de 35 metros e ao que junto a ele foi encontrado como uma “Pompeia inglesa”. Mas ao contrário da cidade Italiana que a erupção do Vesúvio engoliu, não foi a lava a responsável pelo facto de os artefactos estarem “maravilhosamente conservados”, mas o lodo, explicou à Agência France Presse (AFP) o arqueólogo Christopher Dobbs, que participou nas escavações nos anos 1970 e 80.

O Mary Rose era o navio-almirante da frota de Henrique VIII, a quem serviu fielmente durante 34 anos de intensos combates com a marinha francesa. Mas, em 1545, na Batalha do Solent, estreito no Sul de Inglaterra que separa a ilha de Wight do continente, afundou-se. Mais ujma vez combatia a França – a poderosa armada de Francisco I, que reunia 200 embarcações e 30 mil soldados, contra os 12 mil ingleses e os seus 80 navios.

Os contornos em que se terá dado o naufrágio, a que o próprio rei assistiu, não são claros. Alguns dos relatos da época falam de uma possível negligência dos marinheiros, que terão deixado abertas as escotilhas dos canhões, por onde a água entrou quando o navio adernou por causa do vento. Outros atribuem a tragédia ao peso excessivo, garantindo que não seria de esperar que o Mary Rose suportasse tamanha quantidade de armas e munições.  

No naufrágio perderam a vida quase 400 homens (da tripulação terão sobrevivido apenas 30 a 40 marinheiros, na sua maioria ainda adolescentes ou com pouco mais de 20 anos).

Resgate complicado
Quatro séculos mais tarde, em 1971, os destroços do navio foram identificados e os arqueólogos deitaram mãos à obra para recuperar pedaços de madeira, ossadas dos tripulantes, canhões, armas e outros objectos sepultados no lodo. Em 1982, depois de uma complexa operação de resgate que, no total, terá envolvido 500 mergulhadores voluntários que aprenderam a usar os grandes aspiradores subaquáticos desenhados para sugar detritos e sedimentos, o Mary Rose foi remontado, como se fosse uma construção em Lego.

O novo museu, que abre esta sexta-feira, foi construído à volta da embarcação, nas docas de Portsmouth, onde estão atracadas e visitáveis duas outras glórias da marinha britânica, o HMS Victory (século XVIII) e o HMS Warrior (século XIX).

As galerias onde estão expostos os 19 mil objectos recuperados dos destroços estão organizadas em torno da carcaça de madeira e distribuídas por três andares, tantos quantos os do Mary Rose. Nas vitrinas há artefactos que contam, cada um à sua maneira, como era o dia-a-dia de uma grande embarcação da frota inglesa em pleno século XVI, com vários reinos europeus interessados em invadir a ilha.

Chris Brandon, um dos arquitectos que conceberam o interior deste museu que custou 41 milhões de euros, explicou à AFP que a exposição foi desenhada de forma a valorizar o mais possível os artefactos, e é por isso que as vitrinas são cuidadosamente iluminadas, fazendo brilhar canhões, moedas e colheres de pau como se fossem jóias, enquanto os corredores de circulação estão praticamente às escuras. A equipa do museu, cujo exterior foi concebido pela firma Wilkinson Eyre Architects, quis ainda dar ao visitante a sensação de estar a bordo e, para isso, conta com o som do mar, do vento e até da madeira a estalar.

“É uma colecção extraordinária que constitui o melhor dos testemunhos sobre a vida nessa época”, garante John Lippiett, director-geral do Fundo Mary Rose, um dos grandes responsáveis pela construção do novo museu, acrescentando, por exemplo, que as ossadas resgatadas ao fundo do mar “permitirão deduzir quanto tempo viveriam estes homens e de que tipo de ferimentos e doenças sofriam”.

As análises aos restos mortais permitiram identificar, por exemplo, alguns armeiros e um dos rapazes que tinham a função de levar pólvora aos artilheiros. O estudo dos objectos, por seu lado, levou os investigadores a concluir que o mestre carpinteiro, assim como o principal cozinheiro e o chefe dos armeiros, era muito bem pago, já que no seu cofre foram encontradas colheres de estanho, moedas de prata, um livro, uma bolsa de couro bordada, um relógio de sol e jóias.

Para que seja possível até ao visitante mais jovem ter uma ideia de como era a tripulação do Mary Rose, uma equipa de cientistas forenses reconstituiu, a partir dos seus esqueletos, o rosto deste mestre carpinteiro, e também o de um cozinheiro e de um arqueiro, todos essenciais à vida a bordo. Não falta, sequer, um fox terrier a que, bem a propósito, deram a alcunha de Escotilha (é preciso não esquecer que nos navios havia sempre cães e gatos para caçar os ratos).

Algumas das áreas mais singulares do Mary Rose, como o convés do armamento ou o camarote do cirurgião (que era também o barbeiro), foram recriadas, escreve o jornal inglês The Independent. Numa das paredes há uma versão digital de uma pintura da época em que se vê o rei a assistir ao naufrágio, com o Mary Rose quase afundado, com corpos a flutuar à sua volta e alguns sobreviventes pendurados nos mastros, explica o jornal The Telegraph.

O exemplo sueco
Dada a predominância de madeira – no navio e em muitos dos objectos expostos – é seguro dizer que o novo museu levantou grandes desafios do ponto de vista da conservação dos materiais. A embarcação, em si, é o maior deles. Para evitar que o casco de 35 metros se desmantele por acção do ar ou devido a um ataque de micro-organismos, explica ainda Christopher Dobbs, os destroços do Mary Rose foram limpos com água fresca para dessalinizar a madeira de carvalho e, depois, pulverizados com uma solução de polietilenoglicol (PEG, uma espécie de cera, explica a publicação online The Art Newspaper, destinada a estabilizar a estrutura).

Este processo começou há 30 anos, assim que os especialistas deram início à remontagem, e terminou no mês passado. A operação de secagem arranca agora e deverá prolongar-se por quatro ou cinco anos – é por isso que, para já, os visitantes do museu não podem aproximar-se do navio, visível apenas através de pequenas janelas dispersas pelas galerias. O casco continuará fechado na sua câmara de secagem, para que as madeiras se libertem de todos os líquidos.

Este método foi testado pela primeira vez no Vaza, embarcação do século XVII que pertencia à Marinha sueca e que afundou no porto de Estocolmo na sua viagem inaugural. A experiência com este navio faz também com que os técnicos encarregados da conservação do Mary Rose temam que o navio venha a degradar-se devido à acção dos ácidos sulfúricos que ainda permanecem dentro das madeiras. Cientistas da Universidade de Kent estão a trabalhar para minimizar os impactos destes compostos, garante o Art Newspaper.

Cerca de um terço do Mary Rose está intacto – o que corresponde a estibordo (parte direita do navio quando olhamos para a proa) e que assentou no lodo quando a embarcação chegou ao fundo. O restante foi bastante afectado pela acção das marés e de micro-organismos. Boa parte do convés está, no entanto, ainda completa.

Entre os objectos recuperados nas cabinas e outras dependências do navio, há uma bota de cabedal, 50 caixas e cofres, oito rosários – algo que não teria agradado ao rei, que proibia orações a bordo – espadas, dezenas de arcos e flechas, capas de livros em couro junto a tinteiros e penas, utensílios de cozinha e muitas moedas de ouro e prata. A quantidade de dinheiro disponível pode explicar-se, dizem os historiadores, pelo facto de o Mary Rose ser o navio-almirante e fazer parte da lista de tarefas dos seus oficiais o pagamento às diversas tripulações e a compra de mantimentos e munições.

A avaliar pelas descrições da imprensa inglesa, a visita a este museu explica por que razão tantos sonham encontrar um navio naufragado, como o Mary Rose.