José Florentino: um rapaz com uma Leica no meio de artistas como ele
Com 29 anos, o português José Florentino está a fazer um arquivo fotográfico de artistas contemporâneos. Maurizio Cattelan e Nanni Moretti já se cruzaram com a sua Leica
Descontraído, Maurizio Cattelan, de perna cruzada e calções de banho, lê um livro. Em tom de desafio, Nanni Moretti quase parece querer saltar da fotografia. A actriz Carole Bouquet, estrela de "Cet obscur objet du désir" de Luis Buñuel, mostra-se na intimidade de um espelho. O fotógrafo Michael Ackerman na penumbra, tal como o seu trabalho. São retratos de artistas, quando jovens e não só, recolhidos pela Leica do português José Florentino, obstinado em fazer um arquivo fotográfico sobre eles e para eles.
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Descontraído, Maurizio Cattelan, de perna cruzada e calções de banho, lê um livro. Em tom de desafio, Nanni Moretti quase parece querer saltar da fotografia. A actriz Carole Bouquet, estrela de "Cet obscur objet du désir" de Luis Buñuel, mostra-se na intimidade de um espelho. O fotógrafo Michael Ackerman na penumbra, tal como o seu trabalho. São retratos de artistas, quando jovens e não só, recolhidos pela Leica do português José Florentino, obstinado em fazer um arquivo fotográfico sobre eles e para eles.
"Vou fazê-lo até ao fim dos meus dias." Para dar azo à "vontade de fotografar pessoas" que "transmitem alguma coisa", para as "homenagear" e "agradecer". Pessoas com quem José Florentino, a viver em Palermo, Sicília, há já seis anos se tem vindo a cruzar. Este é, aliás, um projecto pessoal em tudo — na escolha dos retratados, na procura pelo "momento" em que a fotografia acontece — que, tal como não tem um fim, também não teve um princípio definido.
A Leica é para José uma extensão do seu corpo. É-lhe natural. "Ando com ela para todo o lado.” Ou quase. A lente é de 40mm, o que pressupõe “proximidade”. Este projecto partiu, inicialmente, dessa simples premissa: um rapaz dentro da cena artística, uma câmara fotográfica sempre a tiracolo, um momento entre amigos ou conhecidos. O arquivo já o era sem o ser.
O propósito veio mais tarde num encontro com o arquitecto, professor, fotógrafo (e muito mais) Maurizio Di Puolo. José estava a fazer um trabalho em Roma há uns anos e o italiano, sem o conhecer, cedeu-lhe o seu estúdio de revelação. Um dia, aparece com uma cobiçada Rolleiflex 2.8C e diz-lhe: “Todos os fotógrafos devem ter uma 6x6 [câmara de médio formato]”. Era um presente. “Fiquei sem palavras, acho que nem consegui agradecer”, conta José, que depois ficou a conhecer o arquivo fotográfico “incrível” e “gigante” que Di Puolo tem de artistas de outros tempos, como Man Ray e companhia. Quando o português lhe mostrou os retratos que ia fazendo, os tais de amigos e conhecidos, veio o desafio: “E se juntássemos os dois arquivos? Os teus artistas de agora com os meus de antigamente.”
Como zangar Moretti?
Entre os retratados (vê a galeria) estão artistas conceituados e outros desconhecidos (um “risco” assumido, “apostas” do próprio Florentino). Muitos italianos (pura questão de proximidade), quase todos estrangeiros, apenas um português, pelo menos para já: Tomé Duarte. São imagens a preto e branco, reveladas e impressas pelo autor (que, convém dizer, nada tem contra o digital, “antes pelo contrário”). É uma galeria fotográfica, mas também de histórias. Ora vejamos.
Cattelan, controverso artista italiano que já pôs Hitler a rezar – “HIM” (2001) – e um meteorito a derrubar o Papa João Paulo II — “La Nona Ora” (1999) —, foi apanhado num momento de descontração, claro está. José encontrava-se em Filicudi, ilha onde o artista italiano tem uma casa. Cruzaram-se num almoço de amigos; no final, uns foram para a piscina, outros foram ler (como Cattelan), ele começou a fotografar. Nada planeado. Já no caso de Nanni Moretti, cruzou-se com o realizador em Roma quando estava a fotografar o Festival de Cinema Francês para a Embaixada de França. Provocou-o. “Quase tentei que ele se zangasse.” Daí o olhar de sobressalto. Para quê? “Para ficar mais interessante. Senão, era só mais uma foto.”
Até agora, só pegou no telefone uma vez para fotografar alguém: o cantautor Fabrizio Cammarata. E hoje são amigos. Por vezes, a fotografia demora a “acontecer”; outra vezes, é rápido. José transforma-se numa espécie de antropólogo no terreno, estudando movimentos, antecipando atitudes. Para estar “preparado” para aquele “segundo” em que “a fotografia acontece”. Para ser tudo natural, “sem poses”, uma característica recorrente no seu trabalho. “Os retratos que publico no meu site não têm um ‘conceito’ ou um projecto, não são planeados ou estudados, são coisas que saem naturalmente, pedaços de vida.”
Regressar? Só para um "retiro"
Foi para Palermo, apaixonado, pela mão da ex-namorada. Para trás, um curso no Instituto Português de Fotografia, no Porto, que não lhe encheu as medidas. Ficou (“gostei do que encontrei”) e hoje, com 29 anos, confessa que não pensa em regressar por agora. Só se fosse para um “retiro” de dois meses em “Cheires ou Freixo de Espada à Cinta”, onde tem casas de família. A verdade é que já não reconhece o Porto que deixou. “Ao contrário das cidades aqui em Itália (tirando, talvez, Milão), o Porto é felizmente uma cidade muito dinâmica sobretudo neste momento.”
Por outro lado, ser artista em Itália não é um “estigma”. “Existe uma valorização cultural diferente, as pessoas crescem dentro dos museus porque o podem fazer, porque os museus existem. Digamos que é mais normal ser artista”, explica. Daí acreditar que, se fizesse estes retratos em Portugal, não seria “apreciado e respeitado” como é em Itália. “São os artistas a convidar-me para os estúdios deles, são eles os primeiros a admirar aquilo que faço”, comenta. Afinal, “cresceram com gente como Ugo Mulas, Claudio Abate e Maurizio Di Puolo”.
Continua a conciliar a fotografia e a arte com outros trabalhos, nomeadamente na área da restauração. Noutro dia foi figurante num filme. Como artista, integra, por exemplo, um colectivo de arte visual chamado Oblivious Artefacts. Foi também um dos artistas convidados para ocuparem e desenvolverem projectos num edifício de Palermo (o ZAC).
José Florentino considera que a sua fotografia não é a ideal para trabalhar como “freelancer”, sendo “normalmente mais apreciada em espaços como galerias ou em livros”, mas já dá para pagar contas. No passado, chegou a recusar trabalhos porque sentia que ainda “não era o momento”. “Preferi ganhar dinheiro para viver com trabalhos fora do âmbito fotográfico, do que prostituir-me da fotografia.” Resultado: “Agora, faço aquilo que quero.”