Jim Jarmusch tem coração de vampiro

Os últimos filmes da competição no Festival de Cannes ao sabor dos vampiros e do S&M.

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Mas também (já) não há filmes de vampiros como Only Lovers Left Alive, de Jim Jarmusch, tão aristocraticamente intoxicado, tão letargicamente snob e, sobretudo, tão condenado a inventar o seu próprio léxico e a sua etiqueta – é que não dá, no século XXI, para andar a correr atrás dos pescoços das pessoas, é preciso fazer outras coisas.

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Mas também (já) não há filmes de vampiros como Only Lovers Left Alive, de Jim Jarmusch, tão aristocraticamente intoxicado, tão letargicamente snob e, sobretudo, tão condenado a inventar o seu próprio léxico e a sua etiqueta – é que não dá, no século XXI, para andar a correr atrás dos pescoços das pessoas, é preciso fazer outras coisas.

Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton) vivem há muitos anos, como os nomes indicam. Escondem-se mas margens da invisibilidade, cruzando as noites entre Tânger e Detroit, com os nomes de Stephen Dedalus e Daisy Buchanan - começámos com ela este Festival de Cannes, com a miragem de O Grande Gatsby…. Não são literatos de bolso, como se vê. Andam com os seus calhamaços (Eve empacota Infinite Jest, de David Foster Wallace) e com a sua música - Adam é rapaz de rock experimental, Eve é mais rapariga para a Motown e Stax – quando vão ter com o amigo Christopher Marlowe (John Hurt), esse mesmo, que habita o exilio dos expatriados, Tânger, onde arranja sangue da melhor qualidade, a única que é compatível com vampiros de vidas frágeis, cada vez mais terminais, ameaçadas pelo sangue contaminado – e pelo mau gosto e pouca cultura dos zombies, que somos nós, os humanos.

Só para mapear de forma mais nítida este lifestyle, que ao longo dos séculos se cruzou com Franz Kafka, Proust ou Iggy Pop: Adam mora em Detroit perto de Jack White (White Stripes), como ele mostra a Eve nas deambulações nocturnas que os dois fazem por uma cidade que, depois de ter sido cidade da música e dos carros, é hoje fantasma.

Jim Jarmusch, que deve ser um vampiro destes (só pode ser; ele e a sua entourage detectam-se à distância), é responsável por ter acabado a competição da 66.ª edição do Festival de Cannes, onde se estreou com Stranger than Paradise (1984, Câmara de Ouro para as primeiras obras), piscando o olho ao espectador de forma tão subtil, tão musical e tão desarmadamente amorosa. Não obriga ninguém a participar, não obriga ninguém a dançar, que o segredo de ser vampiro esta na discrição. Mas entrando no jogo, o espectador sente-se escolhido para o clube de eleitos. A coisa tem de funcionar pelo fetiche e pela mística, por isso Jim recusa-se, mesmo não querendo ser pouco cortês perante quem pergunta, explicar o porquê das luvas que os vampiros usam - não há história alguma com alho, isso é tudo falsidade, como se sabe, mas há as luvas…-, o porquê destes livros, desta música, que Jarmusch co-criou, ou o porquê de Tânger e Detroit.

É tudo ele, Jim, nada é aleatório, indica - sobre a Motor City concede: os pais iam comprar carros a Detroit, e ali ficavam o resto do dia e da noite, era “a Paris do Midwest” americano. Algo do sortilégio de Only Lovers Left Alive, projecto que Jarmusch esperou sete anos para concretizar, o ânimo sendo sempre reforçado pela cumplicidade de Tilda Swinton e John Hurt, deve-se ao trabalho de montagem do brasileiro Affonso Gonçalves, aos tempos da sua “visual music” (palavras de Jarmusch). Tilda explicou tudo e simultaneamente tornou tudo mais inexplicável, e assim deve permanecê-lo: disse ela que há um “bater de coração” neste filme, é o do lobo. Foi o melhor filme americano da competição, é o melhor Jarmusch em muito, muito tempo, quase tanto como o tempo de Adam e Eve…

Já vimos Roman Polanski, numa vida antiga, a braços com alhos, com dentes e com uma rapariga loura, que na altura era sua mulher, a malograda Sharon Tate. Foi em Por Favor não me Mordam o Pescoço (1969). Aquilo que Roman já viveu podia cansar qualquer vampiro. Mas ele não se cansa. E parece ter pânico de cansar o espectador. Quando no ano passado, em Cannes, o seu agente lhe entregou a peça de teatro de David Ives, Venus in Fur, dizendo-lhe que era a cara dele – e já lá vamos -, Roman pensou que tendo começado a sua carreira com três actores (A Faca na Água, 1962) o desafio podia ser filmar agora com dois e não aborrecer ninguém. Seria também o seu filme para a mulher, Emmanuelle Seigner, que irrompe pelo teatro onde Mathieu Amalric acabou o seu dia a procurar, em vão, uma actriz para a sua encenação da peça de Leopold von Sacher-Masoch. Vanda, como ela se chama, chega encharcada e tarde ao casting. É grosseira e provinciana.

Ou assim pensa Thomas, como ele se chama. Porque em vez de duas personagens haverá se calhar mais, aquelas que Vanda e Thomas vão revelando ser quando começarem a encarnar no roleplaying “sadomasoquista”. Que acabará com a humilhação de Thomas, que tem a cara e o cabelo de Roman Polanski, como não passa despercebido a ninguém, e lá chega o momento em que pinta os lábios (como Polanski em O Inquilino, 1976) e veste as peles (como Ben Kingsley no anúncio que o cineasta fez para a Prada). Estes ecos da sua obra, diz o realizador, começa só ele agora a vê-los. É preciso esforço para acreditar nisso, mas é um teatrinho divertido. Como o filme, que não é grande mas mostra que eles gostaram de jogar. É que coisas como Chinatown não aparecem muitas vezes, mesmo no tempo de um vampiro. Polanski, honra lhe seja feita, sabe isso.