Memórias

O que trazemos connosco, para lá das roupas que vestimos, é parte da vida que estamos prestes a deixar e que nos deixa saudade

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kenneoh/Flickr

De todos os emigrantes com quem me cruzei ao longo dos últimos anos, o Jorge foi o que mais me intrigou. Sei do que falo, até porque partilhámos casa durante um mês e ainda hoje trabalhamos para a mesma empresa, embora em ilhas diferentes (a bem do nosso fígado).

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De todos os emigrantes com quem me cruzei ao longo dos últimos anos, o Jorge foi o que mais me intrigou. Sei do que falo, até porque partilhámos casa durante um mês e ainda hoje trabalhamos para a mesma empresa, embora em ilhas diferentes (a bem do nosso fígado).


O tipo, que chegou a Cabo Verde poucos dias depois de mim, e com a mesma vontade de ficar por cá sem data de partida, trouxe com ele uma mala de cabine com meia dúzia — o número certo é mesmo este — de coisas. Durante o primeiro ano, teve como bens pessoais adquiridos localmente um colchão de esponja e uns All Star de contrafacção, comprados no Sucupira, o mercado da Praia, onde é possível encontrar praticamente tudo (uma réplica, à escala, do antigo Roque Santeiro angolano).

Fazer a mala para o primeiro voo de ida pode ser um dilema. Como é que resumimos a nossa vida em vinte quilos?

Tive um outro colega, o Alexandre (outro grande companheiro de viagem), a quem não bastou a mala de porão. Teve que lhe juntar umas caixas, despachadas como carga.


O que trazemos connosco, para lá das roupas que vestimos, é parte da vida que estamos prestes a deixar e que nos deixa saudade (ela, mais uma vez). Ainda chouriços, queijos e presunto? Que fotografias? E da casa que vamos deixar, o que escolher que nos mantenha ligados a ela? O que é que nos vai fazer mesmo muita falta? Que coisas é que “isto não fica, nem pensar”?


Quando me mudei para Luanda, levei comigo um álbum de família. Entretanto, à vinda para Cabo Verde, deixei-o no Seixal.


Há memórias que guardamos para sempre. Mas a verdade é que mesmo essas, a dada altura, e até sem darmos por isso, vão perdendo a intensidade dos primeiros meses.


Temos — muito para lá do consciente — uma enorme capacidade de adaptação e, com o tempo, substituímos o passado pelo presente.


Como gordo que sou, as minhas memórias são muito feitas de gastronomia. Ainda há dias fui comer leitão da “Bairrada de São Vicente” (que é uma espécie de leitão da Mealhada não tão bom), mas aos sábados, por exemplo, substituí o cozido à portuguesa por uma cachupa rica.


Lembro-me da primeira vez que fui a Portugal, depois de estar em Angola. Passei duas semanas num corrupio. Quis voltar a todos os lugares, visitar todas as pessoas, comer todos os pratos.


Agora, que tenho outros lugares e outras pessoas (comida não, porque isso nunca é demais), cada [raro] regresso é mais tranquilo, restrito à família e a um ou outro amigo mais chegado, que resistiu ao tempo e à distância ou que não partiu, também ele.


Somos muito, ou quase tudo, a soma de experiências. As mais significativas permanecem gravadas na memória, que é o melhor sítio para arquivar a vida. Se um dia deixar as ilhas, além do filho que conto fazer, acho que não vou precisar de levar mais nada comigo. O que conta já cá está.