A voz do zé-ninguém
Em meados dos anos 50, o dramaturgo Tom Stoppard teve a audácia de voltar a contar a história de Hamlet pelos olhos dos dois infelizes zés-ninguéns: Rosenkrantz e Guildenstern
"Hamlet" é uma peça labiríntica e excessiva, com um protagonista labiríntico e excessivo, que raramente é interpretada na totalidade, visto que o texto inteiro demora cerca de cinco horas a ser representado. Entre as mais comuns vítimas desses cortes estão Rosenkrantz e Guildenstern, duas personagens secundárias, muito secundárias, pretensos amigos de Hamlet, a quem espiam a mando do Rei Cláudio, e que este encarrega de acompanharem Hamlet no exílio para Inglaterra, onde são enganados por este, e acabam com as cabeças cortadas.
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"Hamlet" é uma peça labiríntica e excessiva, com um protagonista labiríntico e excessivo, que raramente é interpretada na totalidade, visto que o texto inteiro demora cerca de cinco horas a ser representado. Entre as mais comuns vítimas desses cortes estão Rosenkrantz e Guildenstern, duas personagens secundárias, muito secundárias, pretensos amigos de Hamlet, a quem espiam a mando do Rei Cláudio, e que este encarrega de acompanharem Hamlet no exílio para Inglaterra, onde são enganados por este, e acabam com as cabeças cortadas.
Em meados dos anos 50, o dramaturgo Tom Stoppard teve a audácia de voltar a contar a história de Hamlet, desta vez não pelos olhos do próprio Hamlet, mas pelos olhos dos dois infelizes zés-ninguéns: Rosenkrantz e Guildenstern. Em "Rosenkrantz e Guildenstern Estão Mortos", agora encenado por Marco Martins, acompanhamos estas personagens enquanto se entediam, se preparam para a missão de Cláudio, se inquietam com as suas implicações morais, lidam com o falhanço, assistem impotentes ao desenrolar dos acontecimentos, e enfrentam, horrorizados, a sua própria morte, absurda e inútil.
Se Shakespeare desprezou as duas personagens, ao ponto de as tornar quase indistintas, Stoppard humaniza-as e mostra-as frágeis num mundo que as trata como meras ferramentas de interesses superiores. Tal como os dramaturgos Samuel Beckett e John Osbourne, como a literatura e o cinema neo-realista, como pretensamente os atuais "reality shows", Stoppard ignora os heróis e mostra as pessoas comuns, os homens e mulheres que não fazem história, as personagens que são riscadas dos enredos, os zés-ninguéns.
Mas mesmo que hoje escutemos as suas vozes e julguemos conhecer as suas histórias, a verdade é que depois da fama a maioria dos concorrentes dos "reality shows" regressam à obscuridade, os protagonistas do neo-realismo não se conseguem libertar do sistema que os condena, as personagens de Beckett e Osbourne afundam-se no desespero e Rosenkrantz e Guildenstern, apesar da compaixão que Stoppard lhes dedica, não conseguem escapar ao destino cruel que Shakespeare lhes traçou.