Que viva a fantasia noir dos Dead Combo

Os Dead Combo fizeram uma magnífica síntese de carreira perante uma sala esgotada.

Foto
Miguel Manso

Este é um concerto rock em que o público grita “Bravo!” no final de uma canção. Este é um concerto de fado tocado por mariachis possuídos e é um concerto de admiradores de Tom Waits (com direito a versão e tudo) que adoram ginga africana (viva Lisboa Mulata, a eléctrica). Não é, portanto, nem concerto de rock, nem de fado, de rancheras ou de funaná. É um concerto em que a guitarra pode caminhar pé ante pé em ritmo de tango, avançar serpenteando, ou libertar um trinado eléctrico que não é propriamente fado, mas a ideia de fado que o homem que a toca arranca ao espírito e à imaginação. Esse homem que marca o ritmo batendo a bota no chão com estrondo, como o faria John Lee Hooker ou um saltimbanco irado com sabe-se lá o quê à mesa de uma ruidosa tasca desconhecida.

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Este é um concerto rock em que o público grita “Bravo!” no final de uma canção. Este é um concerto de fado tocado por mariachis possuídos e é um concerto de admiradores de Tom Waits (com direito a versão e tudo) que adoram ginga africana (viva Lisboa Mulata, a eléctrica). Não é, portanto, nem concerto de rock, nem de fado, de rancheras ou de funaná. É um concerto em que a guitarra pode caminhar pé ante pé em ritmo de tango, avançar serpenteando, ou libertar um trinado eléctrico que não é propriamente fado, mas a ideia de fado que o homem que a toca arranca ao espírito e à imaginação. Esse homem que marca o ritmo batendo a bota no chão com estrondo, como o faria John Lee Hooker ou um saltimbanco irado com sabe-se lá o quê à mesa de uma ruidosa tasca desconhecida.

Este é um concerto de celebração. O dos Dead Combo de Pedro Gonçalves, o "gangster" no contrabaixo, na guitarra, no piano, na melódica ou no rádio transformado em theremin, e de Tó Trips, o “gato-pingado” que toca guitarra, que percute a guitarra furiosamente, que atira címbalos sobre as cordas como sonoplastia, que a toca com uma maraca para acentuar o poder do ritmo.

Terça-feira, os Dead Combo comemoraram dez anos perante a plateia esgotada do Teatro São Luiz. “Quando começámos, a nossa ambição era tocar no restaurante da esquina”, disse algures Pedro Gonçalves. “Nunca imaginámos isto.” Isto, pegando noutra expressão usada por Gonçalves já quase no final das cerca de duas horas de concerto, é o “paraíso” dos Dead Combo. Ou seja, o palco e a fantasia noir que ali nasce, criada pela música que se une magistralmente ao ambiente cenográfico, criado pelos músicos que, tal como acontece nos temas que criam, são espelho da realidade e matéria de ficção. Nesse sentido, com a ajuda dos exemplares jogos de luz e dos cenários emprestados pelo São Carlos, com esta música que vive da indefinição entre géneros (é a música daqueles “dois tipos”, tão-só e tanto quanto isso), mas em que reconhecemos algo de iminentemente nosso (uma melodia, um ambiente, as referência nos títulos das canções), o concerto de celebração foi nada menos que perfeito.

Tó Trips e Pedro Gonçalves foram primeiro sombras misteriosas, gigantes, projectadas na tela transparente na boca de cena – ouviu-se Rumbero. Tela erguida, palco totalmente revelado, vimos os bouquets de rosas espalhados pelo chão ou sobre os amplificadores, os rádios e altifalantes antigos que os decoravam. Pedro Gonçalves curvado sobre o contrabaixo, Tó Trips sentado, cartola puxada sobre os olhos, totalmente concentrado na guitarra, corpo respondendo com espasmos aos sons que dela extraía. Sopa de Cavalo Cansado e um candeeiro de tecto balançando sobre eles. Bem-vindos à cave Dead Combo. O concerto arrancava verdadeiramente.

Passámos por toda a discografia, desde os inícios de Cacto e Eléctrica Cadente, rock sónico e banda sonora de Western mutante, ao filme feito canção (da melancolia ao frémito de uma perseguição) de Putos a Roubar Maçãs. Da tocante Rua das Chagas à balbúrida Waitsiana no velho Cais do Sodré que é Lusitânia playboys (a tal dos címbalos como sonoplastia). Ouviram-se canções que já soam a standards, tal a forma como as suas melodias principais parecem acompanhar-nos desde sempre (Mr. Eastwood ou Eléctrica Cadente), e ouvimos canções de marinheiros alegremente bêbados, com Pedro Gonçalves comicamente dobrado sobre um pequeno piano trazido a palco (Esperanza, Bounty), ou canções de marinheiros tragicamente doridos, quando o palco se transformou em salão de baile novecentista (com lustres pendendo do tecto e tudo) e Gonçalves trocou o piano pela melódica soprada lá ao fundo, quase nos bastidores entrevistos do teatro (Rodada).

Num momento em que a noção habitual de grande espectáculo passa por mais e mais aparato, por muito a acontecer ao mesmo tempo, foi incrivelmente reconfortante assistir a tudo isto. Trabalho de artesão. Um concerto de dois músicos que dispensam palavras na música – e não sentimos falta delas –, conduzindo a festa com a descontracção e sem ego.

“Nós somos aquele tipo de banda que tem muitos instrumentos mas toca sempre os mesmos”, atira Tó Trips a determinado momento. Não são precisos muitos, na verdade. Ao longo de duas horas, atravessámos dez anos de carreira de uma banda que se foi reinventando sem nunca perder de vista o essencial: a comunicação que se estabelece quase telepaticamente entre aqueles dois em palco. O desejo de porem a sua vida, as suas redondezas e as descobertas que as viagens lhes proporcionam, em canção.

Acabara Temptation, a versão de Tom Waits em kazoo e guitarra-maraca e acenderam-se as luzes laterais do São Luiz. O encore, porém, não terminaria aí. “Vêem, não precisamos que peçam muito”, sorri Pedro Gonçalves perante os aplausos. “Esta é mesmo a última.”

Ai que Vida! Tó Trips canta pela primeira vez, em tom lamentoso esganiçado. Está a mostrar-nos como os acompanhar. O lamento, entoado por todos, riso sobre a miséria, é de vitória. Porque isto não tem de ser o nosso fado. Parabéns, Dead Combo. E obrigado.