A segunda torre do Aleixo, um cálice de Porto, uma cidade em silêncio

Enquanto Rui Rio sonha com o homem novo do empreendedorismo liberal, os derrotados deste mundo, que não sabem fazer-se à vida porque a vida não sabe deles, transitam nas ruas, exilados do seu próprio bairro

Foto
Fernando Veludo

Enquanto Rui Rio beberica com deleite o seu cálice de velho vinho do Porto, a segunda torre do Aleixo implode com estrondo, para gáudio hollywoodesco do instinto de espectáculo de uns e para drama de quem vê desaparecer um vínculo à memória e à cidade.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Enquanto Rui Rio beberica com deleite o seu cálice de velho vinho do Porto, a segunda torre do Aleixo implode com estrondo, para gáudio hollywoodesco do instinto de espectáculo de uns e para drama de quem vê desaparecer um vínculo à memória e à cidade.

Enquanto Rui Rio saboreia com encanto o delicioso néctar, uma urbe silenciosa esquece que aquela destruição não significa recomeço, não representa mudança, não inclui a esperança, antes a viagem para um qualquer outro bairro que não se conhece, longe do fio de horizonte que enlaça o mar, o Douro e o céu, longe das redes que se criaram em décadas de sobrevivência, em sempre frágil tessitura, apesar de tudo amenizada pelos afectos.

Enquanto Rui Rio sorri para o perfil da sonhada imortalidade, a arraia-miúda de Fernão Lopes continua acorrentada às malhas da miséria, que agora se chama droga, que agora se chama desemprego, que agora se chama precariedade, que agora se chama dentes podres, que agora se chama esquecer a doença para não comprar remédios, que agora se chama ser pobre e como tal ser tratado: identificado, escorraçado, “assistido”, vigiado, transferido, punido.

Enquanto Rui Rio sonha com o homem novo do empreendedorismo liberal, os derrotados deste mundo, que não sabem fazer-se à vida porque a vida não sabe deles, transitam nas ruas, meios-vivos, meio-mortos, exilados do seu próprio bairro, repatriados dentro do seu burgo, para irem semi-viver ou semi-morrer noutra esquina menos propícia a apetites imobiliários.

Enquanto Rui Rio, do alto do seu poder soberano e tecnológico, faz desaparecer num prodígio de engenharia, esmigalhando como quem fecha a mão, aquela torre da peste e do fedor, higienizando o burgo, mil rostos nos contemplam sem os vermos e sem vermos o que eles veem, porque neste país em cada rosto desigualdade.

Até que se levantem do chão.