Da saudade
Desde que emigrei, já perdi casamentos, funerais, aniversários, reuniões mais ou menos felizes. Tenho uma história para contar que, cada vez mais, se descruza do caminho das pessoas de sempre
Há alguns anos, sentado à mesa de um restaurante em Bratislava, enquanto tentava, devo dizer que sem grande sucesso, apreciar uma espécie de crepe, recheado com algo levemente parecido a fígado, falou-me um turco, estudante de Português, sobre a palavra da nossa língua que mais apreciava: saudade.
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Há alguns anos, sentado à mesa de um restaurante em Bratislava, enquanto tentava, devo dizer que sem grande sucesso, apreciar uma espécie de crepe, recheado com algo levemente parecido a fígado, falou-me um turco, estudante de Português, sobre a palavra da nossa língua que mais apreciava: saudade.
Antes e depois disso, por outras vezes, diferentes pessoas reforçaram a ideia de que há na “saudade” portuguesa algo que a torna singular. Esse jeito de sentir, às vezes chorado, tem tudo a ver com a forma de ser português.
Julgava-nos sozinhos (a nós e aos galegos, segundo a não muito confiável Wikipedia) na descrição una do “sentir só”. Descobri, contudo, no crioulo de Cabo Verde o equivalente “sodade”, cantado por Cesária, na morna em que recorda “nha terra Sao Nicolau” (“minha terra, São Nicolau”).
Saudade, ou “sodade”, no dizer das ilhas, tem tudo a ver com a condição de emigrante a que me referia na última crónica.
Quando se escolhe (ou se é obrigado a escolher) viver fora, decide-se estar sempre longe. Longe de casa (até que a nova se torne nossa), da família, que passamos a ver apenas de vez em quando e não sempre que nos apetece, dos amigos, que muitas vezes se perdem nas horas de voo, e das pequenas coisas que faziam parte da rotina que, tantas vezes, maldissemos.
Em vivendo longe, aprendemos a dar valor a coisas que nos passavam ao lado, até por as tomarmos como garantidas.
Por mais distantes que estejamos de Portugal, não tanto pela geografia como pelas emoções, não deixamos de levantar a cabeça quando vemos uma bandeira ou de aumentar o volume do rádio, ainda que apenas por alguns segundos, se passa aquela canção.
Não sou nada nostálgico, e no dia-a-dia irrito-me muito mais do que me comovo com as portugalidades (e também por esse sentido critico, de quem nunca está bem como está, sou português), mas percebi o que significa essa palavra que, mesmo sem darmos conta, trazemos connosco, gravada na genética.
Hoje em dia, na melhor das hipóteses, vejo os meus pais uma vez por ano — e nunca no Natal, porque as passagens são demasiado caras. Sei que o tempo está a passar e que cada dia que não estamos juntos é um dia a menos que temos para estar. Sinto, por isso, saudade do cliché dos almoços de domingo.
Não vejo a minha afilhada crescer. Deixei-a criança e hoje está praticamente da minha altura. Tenho por isso saudade de a ver tornar-se mulher. Desde que emigrei, já perdi casamentos, funerais, aniversários, reuniões mais ou menos felizes. Tenho uma história para contar que, cada vez mais, se descruza do caminho das pessoas de sempre.
Saudade é uma coisa que trazemos connosco. Uma palavra que nos dias maus nos faz querer voltar, mas que nos dias bons, porque nela se guarda confiança, nos ajuda a recordar o que nos levou a partir.