A última palavra sobre o Mal
Com Fausto chega Sokurov ao fim da sua tetralogia sobre o Mal e os efeitos nefastos, malévolos, do poder. Um quarto tomo inesperado no seu âmbito, já que abandona a relativa precisão histórica, e mesmo política, dos três episódios anteriores - dedicados a Hitler (Moloch), Lenine (Taurus) e Hirohito (O Sol) - para se entregar à abstracção, talvez não totalmente a-histórica nem apolítica mas mais difusa, do germaníssimo mito de Fausto. E é mesmo o Fausto segundo Sokurov, que colheu elementos nalgumas das mais célebres interpretações do mito (a de Goethe, mas Sokurov também menciona a de Thomas Mann) sem “adaptar” nenhuma delas, e também sem estabelecer nenhuma relação explícita com o mais famoso Fausto de cinema, o de Murnau (em 1926). Até se pode dizer - qualquer coisa no tratamento dos cenários, na sua “matéria obscura e vã”, para citar o filme - que o Fausto de Sokurov dialoga com o de Murnau, mas esse diálogo existirá mais na cabeça do espectador do que nas intenções de Sokurov, talvez o menos cinéfilo realizador do mundo, seguramente nada interessado em “citações” e de quem até se pode supor que nem conheça (nem esteja preocupado com isso) o Fausto de Murnau. Tudo isto para frisar: este Fausto é indubitavelmente (indomitavelmente?) sokuroviano, e responde a questões (artísticas, filosóficas) que pertencem ao universo de Sokurov antes de pertencerem a outro qualquer. A coisa mais parecida com um olhar virgem sobre a história de Fausto, como se fosse a primeira vez que alguém sobre ela se lançava.
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Com Fausto chega Sokurov ao fim da sua tetralogia sobre o Mal e os efeitos nefastos, malévolos, do poder. Um quarto tomo inesperado no seu âmbito, já que abandona a relativa precisão histórica, e mesmo política, dos três episódios anteriores - dedicados a Hitler (Moloch), Lenine (Taurus) e Hirohito (O Sol) - para se entregar à abstracção, talvez não totalmente a-histórica nem apolítica mas mais difusa, do germaníssimo mito de Fausto. E é mesmo o Fausto segundo Sokurov, que colheu elementos nalgumas das mais célebres interpretações do mito (a de Goethe, mas Sokurov também menciona a de Thomas Mann) sem “adaptar” nenhuma delas, e também sem estabelecer nenhuma relação explícita com o mais famoso Fausto de cinema, o de Murnau (em 1926). Até se pode dizer - qualquer coisa no tratamento dos cenários, na sua “matéria obscura e vã”, para citar o filme - que o Fausto de Sokurov dialoga com o de Murnau, mas esse diálogo existirá mais na cabeça do espectador do que nas intenções de Sokurov, talvez o menos cinéfilo realizador do mundo, seguramente nada interessado em “citações” e de quem até se pode supor que nem conheça (nem esteja preocupado com isso) o Fausto de Murnau. Tudo isto para frisar: este Fausto é indubitavelmente (indomitavelmente?) sokuroviano, e responde a questões (artísticas, filosóficas) que pertencem ao universo de Sokurov antes de pertencerem a outro qualquer. A coisa mais parecida com um olhar virgem sobre a história de Fausto, como se fosse a primeira vez que alguém sobre ela se lançava.
Tudo no filme corresponde ao ethos de Sokurov. A começar por um particular credo, quase sacralizador, na dimensão artística do cinema. Sokurov filma como se a legitimação artística do cinema fosse um dado longe de adquirido - o que, se já pareceu um anacronismo, se calhar parece-o cada vez menos. A um nível formal, Fausto é, do primeiro ao último momento, pensado numa relação intensa com outras, e mais consagradas, artes. A literatura, evidentemente, e logo na raiz; mas também a música, que em perfeito estilo sokuroviano raramente abandona o campo sonoro, mesmo se durante a maior parte do tempo existe como “rumor”, presença subliminar; e sobretudo a pintura, não só pela inspiração, expressa (ou impressa) a cada plano, de algumas referências caras a Sokurov (e aqui, apesar do “germanismo” do filme, que até é falado em alemão, dir-se-ia que ainda mais os flamengos do que os germânicos como Friedrich), mas também pela atenção que dedica a um dos valores plásticos mais em crise no cinema contemporâneo, a composição: a composição visual de cada plano, no seu todo, entre a disposição espacial dos elementos humanos e cenográficos e o trabalho sobre a superfície da imagem, o tratamento das cores, por exemplo, que não é raro sofrer mutações, “aquecimentos” e “arrefecimentos”, dentro do mesmo plano. Pese o seu classicismo, Sokurov foi dos que acolheu, com ambos os braços, as novas tecnologias (o caso da Arca Russa é um exemplo evidente); e a intervenção digital em Fausto, que não é nada despicienda, é mais uma demonstração do vigor, também aqui quase “virginal”, com que o russo integra a tecnologia nos seus filmes, como se a estivesse a inventar no mesmo passo. Como noutros filmes de Sokurov, de resto, o balanço entre um certo arcaísmo (“cultural”) e o emprego da modernidade tecnológica resulta fascinante.
Tanto mais que toda esta sensualidade plástica - os movimentos do steadycam, que só por si criam uma gravidade, ou ausência dela, que abre para um ambiente onírico, sem pinga de naturalismo - acompanha as grandes questões da narrativa. É um filme dominado pelos “sentidos”, até mesmo pelo mais intraduzível em cinema, o olfacto: repare-se na quantidade de vezes em que os “cheiros”, dos lugares e das personagens, é descrito, à letra ou em metáfora. E são os sentidos que dominam a atracção de Fausto pela jovem Margarida, desde o momento em que a vê na cena do banho (brilhantemente composta e filmada), onde há várias mulheres de diferentes idades e corpos em diferentes estados de conservação. A tentação, por certo, mas a tentação como fuga ao horror da corrupção física, à tendente fealdade das pessoas e do mundo. E o que liga essa fuga à corrupção moral - é neste novelo que o diabo, mais que provavelmente, tem alguma coisa a propor a Fausto, como actualização da serpente edénica (“um antepassado meu”, diz o monstrengo da versão Sokurov). Acaba tudo no Inferno, na aridez mineral, escura como bréu, de uma paisagem de geysers algures na Islândia.