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Título mítico, Taxi Driver é um dos filmes mais determinantes dos anos 70 americanos. Talvez mesmo o primeiro filme dessa década da “nova Hollywood” que em vez de “receber” o que vinha de trás - os anos 60, que aqui aparecem como “ruína” - apontava já, em corte, para o futuro, e para a década seguinte, os anos 80, que trouxeram, na vida como no cinema, a principal descendência deste alucinado encontro entre um calvinista reprimido (Paul Schrader, argumentista) e um católico esgazeado (Martin Scorsese). Aliás, se Scorsese e Schrader voltaram a colaborar pouco depois (em O Touro Enraivecido, e mais tarde em A Última Tentação de Cristo), aquilo que a obra individual de cada um deles veio a ser mostra bem que Taxi Driver é o mais “schraderiano” dos filmes de Scorsese, aquele onde a influência de Schrader teve mais peso. O que não é diminuir Scorsese, bem pelo contrário, antes salientar a felicidade da química produzida por este encontro específico. Encontro, de resto, com um território profundamente scorseseano, as mean streets de uma Manhattan ainda suja e perigosa, anos antes de Woody Allen a cobrir com um manto gerswhiniano e ainda muito longe da “limpeza” do Mayor Giuliano a ter tornado num grande playground para turistas. Sobre essa Nova Iorque, numa altura em que a boémia dos anos 60 tinha descambado na sua própria ruína, Taxi Driver é um dos mais vibrantes (e deprimidos) testemunhos, a par com um dos primeiros filmes de outro católico esgazeado, o Driller Killer de Abel Ferrara, praticamente contemporâneo e quase um seu “lado B”.
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Título mítico, Taxi Driver é um dos filmes mais determinantes dos anos 70 americanos. Talvez mesmo o primeiro filme dessa década da “nova Hollywood” que em vez de “receber” o que vinha de trás - os anos 60, que aqui aparecem como “ruína” - apontava já, em corte, para o futuro, e para a década seguinte, os anos 80, que trouxeram, na vida como no cinema, a principal descendência deste alucinado encontro entre um calvinista reprimido (Paul Schrader, argumentista) e um católico esgazeado (Martin Scorsese). Aliás, se Scorsese e Schrader voltaram a colaborar pouco depois (em O Touro Enraivecido, e mais tarde em A Última Tentação de Cristo), aquilo que a obra individual de cada um deles veio a ser mostra bem que Taxi Driver é o mais “schraderiano” dos filmes de Scorsese, aquele onde a influência de Schrader teve mais peso. O que não é diminuir Scorsese, bem pelo contrário, antes salientar a felicidade da química produzida por este encontro específico. Encontro, de resto, com um território profundamente scorseseano, as mean streets de uma Manhattan ainda suja e perigosa, anos antes de Woody Allen a cobrir com um manto gerswhiniano e ainda muito longe da “limpeza” do Mayor Giuliano a ter tornado num grande playground para turistas. Sobre essa Nova Iorque, numa altura em que a boémia dos anos 60 tinha descambado na sua própria ruína, Taxi Driver é um dos mais vibrantes (e deprimidos) testemunhos, a par com um dos primeiros filmes de outro católico esgazeado, o Driller Killer de Abel Ferrara, praticamente contemporâneo e quase um seu “lado B”.
Utilizámos acima a expressão “em corte”. E “em corte” porque, enquanto operação de observação psicológica de uma personagem, o filme tem muito poucos precedentes, se alguns, no cinema americano. Seria ocasião para discorrer sobre as influências europeias deste filme que no entanto tão radicalmente americano parece - as dietas cinéfilas de Scorsese e Schrader, o gosto pelos “ascéticos” nórdicos do segundo, a atenção do primeiro ao cinema europeu moderno. Na sua relação explosiva com um puritanismo ambíguo e complexado, no seu tratamento de uma realidade distorcida por uma subjectividade nunca clarificada, Taxi Driver, visto hoje, parece dever tanto ou mais ainda aos sombrios Bergmans de 60, ou ao Oito e Meio de Fellini, como a qualquer modelo encontrado na tradição americano.
E no centro de tudo, inclusivamente no centro desse encontro, está a personagem de Travis Bickle, tão mítica como o filme. De Niro foi muitas vezes um actor fabuloso, mas frequentemente definido por algum excesso (como no Touro Enraivecido). Aqui, o que é decisivo nele, e o que de fundamental traz à personagem, é pelo contrário uma espécie de falta. Uma falta de clareza, em primeiro lugar - tudo nele é baço, imperscrutável, em permanente ricochete de qualquer identificação do espectador, um rosto à prova de revelação, assim como uma negação da “aura” no sentido que Béla Balazs deu ao termo. Uma falta de contexto, depois. O mundo que a câmara mostra e o mundo que Bickle vê não são os mesmos, mas Scorsese nunca cede à tentação de fazer a ponte entre os dois, de enunciar o contexto, o “cenário” psicológico em que Bickle está mergulhado. Tudo nele, do sorriso ao olhar, é profundamente perturbante, e explode nessa lendária cena do monólogo ao espelho - “are you talking to me?” - que o tempo tornou numa incomparável expressão paranóica, a loucura deixada a sós consigo própria.
Nunca ninguém estará certo sobre o que acontece no final e sobre o carácter onírico daquela carnificina - a não ser que o gesto dos dedos de De Niro a imitar uma pistola apontada à sua cabeça é, a par com a roleta russa do Caçador de Cimino (dois anos depois), a mais eloquente imagem de um muito americano desespero auto-destrutivo que acompanhou os anos 70. Mas é possível estar mais certo sobre lado “sismógrafo” de Taxi Driver - quatro anos depois dele, Mark Chapman matou John Lennon, e uns meses a seguir John Hinckley disparou sobre Ronald Reagan. Qualquer um deles podia ser Travis Bickley. E Hinckley, fechando o círculo, estava obcecado com a jovem Jodie Foster que se vê em Taxi Driver.