Como esqueci as estantes e me apaixonei por um Kindle
Li avidamente semanas a fio, livros inteiros, como não lia há anos, com prazer, sem saber que horas são, em que página vou e para onde vai o livro, porque eu e o Kindle nos tornámos um só
Sou uma leitora profissional. Escrevo, estudo, investigo, faço crítica literária, entrevisto escritores. Ler é o meu trabalho.
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Já não tenho espaço para livros. São os da licenciatura, do trabalho, do doutoramento, livros que compro como uma mania, como as mulheres que compram sapatos. São os caixotes na garagem dos pais, fechados há anos, que dizem “literatura germânica”, e onde sei que estão o Kafka e o Musil que não relerei tão cedo. São livros nas casas de amigos, em Portugal ou em Londres, vestígios das minhas passagens nomádicas pelo mundo. São as estantes que compro à empresa de móveis sueca, estimando sempre que “aquele Billy de dez prateleiras” é suficiente, para lá regressar seis meses depois e comprar outro.
No ano novo, uma amiga ofereceu-me um Kindle. O postal dizia assim: “Um objecto indispensável para uma jornalista a caminho da Colômbia e de Cuba.” Pedi a um amigo que me explicasse como enviar documentos em PDF para o Kindle para não ter de carregar com fotocópias. Surpreendeu-me conseguir “meter” cinco livros dentro daquela folha mais leve do que um iPhone…
Apesar dos PDF e cinco livros quase não peguei no Kindle na Colômbia, onde estive a participar na bolsa Gabriel García Márquez de Periodismo Cultural da FNPI, em Barranquilla e Cartagena. Uma colega da bolsa, jornalista nos Estados Unidos, Nina Martyris, precisava de ler, de um dia para o outro, um livro de uma escritora que vinha a Cartagena ao Hay, festival literário que estávamos ali a cobrir. Em 24 horas ela precisava de ler um livro para poder entrevistar a autora no dia seguinte. Não o poderia ter feito sem o Kindle. E também ela se apaixonou. Sentámo-nos no hall do hotel com wi-fi, ela com os dólares na mão e eu com os dólares no cartão. Escolhemos o livro, pagámos, fizemos "download". Em 10 minutos a Nina estava no seu quarto a ler.
Andava tão encantada com o Kindle que, confesso, comecei a sentir ciúmes. Disse-me que ia comprar um mal chegasse aos EUA e que estava a adorar ler naquele aparelhinho como se estivesse a descobrir o prazer da leitura pela primeira vez. “É óptimo não saberes o número de páginas de um livro. Sabes apenas a percentagem já lida e a que falta ler. Não vais espreitar a última frase e lês cada parágrafo, cada página-do-kindle, com muito mais atenção”, disse-me a Nina. No Kindle, um virar de página pode ser apenas um virar de parágrafo e cada novo parágrafo nos assalta como se estivéssemos sempre a começar de novo.
Regressada dos périplos transatlânticos, refreei-me nas redes sociais, consegui desligar-me do iPhone e do e-mail. E li avidamente semanas a fio, livros inteiros, como não lia há anos, com prazer, sem contar páginas, sem "deadlines", sem saber que horas são, em que página vou e para onde vai o livro, porque eu e o Kindle nos tornámos um só. E a meio da noite, se o livro acaba, basta descarregar um novo. Do outro lado do mundo directamente para a minha cama.