Naufrágio na tempestade

O que o Teatro Praga tem de pior: a vacuidade no uso do vídeo, a verborreia de citações e referências, o novo riquismo da ostentação.

Foto

Já foi há uns tempos que, a convite do Teatro Praga, tive com alguns deles uma conversa com vista a um livro que queriam produzir, e que neste momento vem a público. Como explico de entrada, o convite e a minha aceitação baseavam-se no facto de eles virem a desenvolver um trabalho teatral que muito me interessa, mas que com frequência também me irrita, e às vezes mesmo muito, pelo suposto “desconstrucionismo”, a mania das citações teóricas e o ego monumental.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Já foi há uns tempos que, a convite do Teatro Praga, tive com alguns deles uma conversa com vista a um livro que queriam produzir, e que neste momento vem a público. Como explico de entrada, o convite e a minha aceitação baseavam-se no facto de eles virem a desenvolver um trabalho teatral que muito me interessa, mas que com frequência também me irrita, e às vezes mesmo muito, pelo suposto “desconstrucionismo”, a mania das citações teóricas e o ego monumental.

Fica assim feita a devida “declaração de interesses”, que calha ocorrer a propósito de um espectáculo, A Tempestade, que é uma apoteose e catástrofe dos Praga, de modo muito óbvio visando novos patamares e um acrescido reconhecimento internacional.

Algo inesperadamente, dadas as condições financeiras e logísticas que implicava, o Sonho de Uma Noite de Verão, baseado em Shakespeare e Purcell – a semi-ópera The Fairy Queen – que era uma autêntica super-produção, tornou-se um êxito internacional, com as apresentações em França e Espanha, possibilitando que a MC93 Bobigny, importante espaço cultural nos subúrbios de Paris, surja logo à partida como co-produtora de A Tempestade, que irá também ser apresentado noutros países. Tal como o anterior, este é um espectáculo baseado na peça de Shakespeare e numa semi-ópera de Purcell, sendo que era suposto haver uma trilogia, a completar com King Lear, para o qual aliás não sei que música de Purcell iriam escolher, uma vez que o compositor não escreveu nenhuma obra dramática baseada naquela peça.

“Era suposto”, disse, e não apenas por no programa deste espectáculo agora não haver nenhuma referência ao outro projecto, mas sobretudo porque A Tempestade enuncia uma reorientação estratégica dos Praga, e que não é apenas mais um afloramento da sua habitual auto-irrisão: “Havemos de chegar ao mainstream”, diz-se e repete-se, e de modo tanto mais liminar no final: “Esta ilha [de Próspero] era uma experimentação e está na altura de ir para o mainstream”, o que é uma ironia mas não deixa de denotar também uma encruzilhada.

É um desejo possível e legítimo em termos de reconhecimento, só é lamentável que seja feita como “Praga digest” e do que eles têm de pior: a vacuidade no uso do vídeo, começando logo na entrada dos espectadores projectada no ecrã de fundo em mise-en-abyme, a verborreia de citações e referências (“- Isto é um absurdo; - Não é nada, é Lacan”), o novo riquismo da ostentação.

Vejamos dois exemplos: André e. Teodósio, Próspero e deus-ex-machina do espectáculo, diz: “Não percebi agora esta coisa do vídeo. É gratuito”. No final, quando cai um espampanante pano ele exclama: “Este manto dourado é absolutamente ridículo”. Em ambos os momentos as afirmações são pertinentes, sem que o criador todavia resista a incluir esses elementos. A auto-irrisão torna-se autofagia.

Aliás, há um ponto importante a clarificar. Com base na experiência dos Stan e depois, de algum modo, dos Forced Entertainment, os Praga reactivaram o equívoco conceito de “criação colectiva”. No caso, este espectáculo é apresentado como tendo texto e direcção artística de Pedro Penim, André e. Teodósio e J.M. Vieira Mendes. De facto trata-se de uma criação de Teodósio, que inclusive, em auto-deslumbramento, até exibe um seu álbum de fotos desde criança. Não há sombra de Penim, que aliás não participa em cena, e é penoso que um dramaturgo com o talento de J.M.V.M. surja associado a um texto com tão mau português.

Frequentemente os Praga fizerem espectáculos “contra” outros anteriores, ou com segundas partes contra a primeira. Parecendo vir na sequência do deslumbrante Sonho de Uma Noite de Verão, A Tempestade não deixa de ser também “contra” aquele. Tratando-se de teatro musical temos também de falar da música. Uma das razões porque O Sonho era uma super-produção é que incluía a música de Purcell interpretada ao vivo pelos Músicos do Tejo. Aqui há uma versão de pop electrónica, com a mais quadrada das batidas, uma pavorosa bateria ao ritmo de 4/4. Não faltam notáveis exemplos de muito diferentes trabalhos musicais baseados em Purcell, como o Guia dos Jovens para Orquestra de Britten, o espantoso pastiche de Michael Nyman (outros tempos!) para O Contracto do Desenhador de Peter Greenaway ou, mesmo no campo pop, assaz singular, a maravilhosa Cold Song de Klaus Nomi. O que se ouve nesta Tempestade é antes um sofrimento.

Ao longo dos anos, alternando grandes espectáculos com falhanços e desastres, os Praga foram-se tornando também num fenómeno de criação de um público próprio e do seu alargamento – na noite da estreia o Grande Auditório do CCB estava mesmo quase cheio e houve entusiásticos aplausos. “The show must go on” também se diz – mas neste momento fica a grande interrogação de saber qual será o rumo dos Praga.