A donzela e os ossos

Porque será que nos tempos de hoje, de suposta paz e relativa prosperidade, o de gesto de uma mulher a acariciar restos humanos nos continua a fascinar e perturbar?

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Bones» é uma série policial americana com dez anos e números de audiência invejáveis, que retrata os casos e a vida da antropóloga forense Temperance Brennan e do seu colega e paixão platónica, Seeley Booth. A fórmula da série não é particularmente original: um caso de homicídio por episódio, investigado pelos protagonistas até se descobrir o culpado, invariavelmente apanhado, mostrando assim a superioridade da razão e das instituições humanas em relação ao caos e egoísmo individual.

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Bones» é uma série policial americana com dez anos e números de audiência invejáveis, que retrata os casos e a vida da antropóloga forense Temperance Brennan e do seu colega e paixão platónica, Seeley Booth. A fórmula da série não é particularmente original: um caso de homicídio por episódio, investigado pelos protagonistas até se descobrir o culpado, invariavelmente apanhado, mostrando assim a superioridade da razão e das instituições humanas em relação ao caos e egoísmo individual.

Os vários episódios são ligados pelos problemas pessoais e pela tensão amorosa entre os protagonistas, como acontecia, nos anos 80, na série policial «Modelo e Detetive», sendo que a mulher, Seeley, encarna uma perspetiva mais racionalista do mundo, ao passo que Booth encarna uma perspetiva mais emotiva, como também acontecia na série dos anos 90, «Ficheiros Secretos».

Aquilo que particulariza a série é a estranha representação de cadáveres, mostrados de forma estética e explícita, e o facto que em cada episódio, invariavelmente, haver um momento em que vemos casta e apolínea Brennan a pegar nos ossos e acariciá-los como se mantivesse uma relação íntima, ou mesmo necrófila com eles.

Estas imagens lembram-me, invariavelmente, a iconografia renascentista da donzela e da morte, em que uma mulher jovem e casta é retratada num abraço amoroso com um esqueleto. Apesar de remontar ao século XV, e especialmente aos quadros e gravuras de Hans Baldung Grien, a imagem tornou-se popular e foi repetida ao longo dos tempos por Egon Schiele, Edvard Munch, ou mais recentemente na performance «Balkan Baroque», de Marina Abramovic.

Ao longo dos tempos, a imagem da Donzela e a Morte foi recorrente em alturas de grande violência, turbulência social, miséria, fome ou medo, como aconteceu nas grandes epidemias e guerras do Renascimento, com as guerras do início do Romantismo, a Primeira Guerra Mundial ou mesmo as guerras da Jugoslávia nos anos 90.

É possível que só inconscientemente os criadores da série tivessem criado estas imagens, talvez como só inconscientemente os seus milhões de espectadores se deixem cativar pelas imagens de ver a bela atriz Emily Deschanel acariciar caveiras e tíbias. Mas porque será que nos tempos de hoje, de suposta paz e relativa prosperidade, o de gesto de uma mulher a acariciar restos humanos nos continua a fascinar e perturbar?