O som do noir em Macau deserta
Produto mais ambicioso da expedição a Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, A Última Vez que Vi Macau é um feliz casamento entre “ficção” e “documento”, na acepção convencional dos termos, conquistado na dissociação entre a banda de imagem e a banda de som. Na imagem, um desfile de planos de Macau, ruas e casas, ao perto e ao longe, raramente encenados, ou “preparados”, para a câmara. No som, e sempre em off, um longo monólogo, em jeito e em espírito de film noir, onde o protagonista envolve numa história de mistério (o que aconteceu à sua “amiga” Candy?) as reflexões suscitadas pelo reencontro, muitos anos depois, com o território macaense. Lembramo-nos de algumas conversas que tivemos depois da exibição do filme no último DocLisboa (onde A Última Vez... foi exibido na sessão de abertura), e de algumas reservas apontadas à “arbitrariedade” dessa relação entre som e imagem. Pensamos, pelo contrário, que essa arbitrariedade não só não merece reservas como é, ela própria e por ela própria, o fulcro do filme, que se encontra aí, nessa aparente ausência de necessidade da conjunção entre o que a imagem mostra e o que o som diz (ou vice-versa). É o real como espigão da ficção, a cidade de Macau como viveiro de “um milhão de histórias”, glosando a lengalenga introdutória de uma célebre série sobre “cidades nuas”.
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Produto mais ambicioso da expedição a Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata, A Última Vez que Vi Macau é um feliz casamento entre “ficção” e “documento”, na acepção convencional dos termos, conquistado na dissociação entre a banda de imagem e a banda de som. Na imagem, um desfile de planos de Macau, ruas e casas, ao perto e ao longe, raramente encenados, ou “preparados”, para a câmara. No som, e sempre em off, um longo monólogo, em jeito e em espírito de film noir, onde o protagonista envolve numa história de mistério (o que aconteceu à sua “amiga” Candy?) as reflexões suscitadas pelo reencontro, muitos anos depois, com o território macaense. Lembramo-nos de algumas conversas que tivemos depois da exibição do filme no último DocLisboa (onde A Última Vez... foi exibido na sessão de abertura), e de algumas reservas apontadas à “arbitrariedade” dessa relação entre som e imagem. Pensamos, pelo contrário, que essa arbitrariedade não só não merece reservas como é, ela própria e por ela própria, o fulcro do filme, que se encontra aí, nessa aparente ausência de necessidade da conjunção entre o que a imagem mostra e o que o som diz (ou vice-versa). É o real como espigão da ficção, a cidade de Macau como viveiro de “um milhão de histórias”, glosando a lengalenga introdutória de uma célebre série sobre “cidades nuas”.
Mais directos ao que de facto importa, Rodrigues e Guerra da Mata também glosam: o Macao de Sternberg, expoente do exotismo hollywoodiano de coloração noir, de que pelo menos um plano é incluído no filme, matriz cinéfila que vem contrapor, de algum modo “infectando-o”, o real reconhecimento territorial. A mecânica do filme sugere que um deles (provavelmente Guerra da Mata) tem de facto uma história pessoal com Macau, enquanto para outro (João Pedro Rodrigues) Macau é, antes de outra coisa qualquer, um território mental povoado por fantasmas de cinema. Esta outra espécie de “dissociação”, prévia e essencial, é raiz do grande jogo que os cineastas vão jogar àquela terra de casinos, como se tudo (cinema e real) puxasse para seu lado até se tornar claro que a realidade e os seus fantasmas são, pelo poder do cinema, uma e a mesma coisa, e caminhassem lado a lado, alegremente, rumo à dissolução no belo “apocalipse” final (tão grande é esse poder do cinema que pode destruir uma cidade).
Alvorada Vermelha, que aparece como “bónus” desta sessão, foi o primeiro filme macaense dos realizadores, mostrado pela primeira vez em 2011. Com o seu título que também convoca uma aura hollywoodiana, não faz nem da alvorada nem do vermelho (vermelho de sangue) palavras vãs. Um mercado macaense, e os trabalhos de preparação daquilo (peixes, sobretudo) daquilo que virá a ser “comida”. Na crueza intrínseca das suas imagens, lembretes de uma relação esquecida (ou escondida) entre homens e natureza, traz para o primeiro plano aquilo que a dominante cultura “gourmet” sublimou: mata-se para comer, há vísceras, sangue, facalhões e mãos humanas na cadeia alimentar.