Vírus e antivírus
Miguel Gomes, realizador de Tabu, é o director por um dia do PÚBLICO e explica o seu conceito para a edição impressa que marca o 23.º aniversário esta terça-feira.
A edição de hoje do jornal está diferente. Esta transfiguração resultou de um sequestro, de uma ocupação, de uma incrustação. A ficção invadiu a redacção do jornal e “colou-se” à actualidade jornalística do dia. Assumo a responsabilidade de imaginar o gesto, embora a sua concretização venha pela mão dos nossos convidados, seniores e juniores. Saúdo o espírito aventureiro de todos.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
A edição de hoje do jornal está diferente. Esta transfiguração resultou de um sequestro, de uma ocupação, de uma incrustação. A ficção invadiu a redacção do jornal e “colou-se” à actualidade jornalística do dia. Assumo a responsabilidade de imaginar o gesto, embora a sua concretização venha pela mão dos nossos convidados, seniores e juniores. Saúdo o espírito aventureiro de todos.
Não sou jornalista. Convidado para ser o “director por um dia” do PÚBLICO, renunciei à ideia de encomendar reportagens, privilegiar determinados assuntos, determinar a linha editorial do jornal neste dia. Pelo contrário, gostaria que a este nível o jornal funcionasse como nos outros dias todos, sem interferências.
A contraproposta que fiz não visa alterar ou condicionar a matéria jornalística do PÚBLICO, mas acrescentar-lhe uma nova camada. Uma camada ficcional. Que é o lugar onde confluem desejos e medos, frustrações e esperanças, fantasmas e dobras de realidade. Mas como inventar esse prolongamento ficcional sem perder a autonomia do trabalho jornalístico? E evitar a grande salganhada onde tudo se equivale e confunde...
Na prática, propus duas alterações. Ficam em vigor duas novas regras, dois invulgares acrescentos ao livro de estilo do jornal neste dia:
1) todas as fotografias (a preto e branco) só serão incluídas nas páginas do jornal depois de sujeitas aos desenhos e pinturas de crianças de uma escola primária;
2) mais de uma dezena de artigos terão um prolongamento ficcional por convidados que continuam a peça após o jornalista a terminar, narrando factos nunca verificados, mencionando relatórios nunca redigidos, produzindo ficção a partir da realidade...
A ideia não é trazer para cá “sonho”, “fantasia” e “ligeireza” como antídoto à brutalidade que hoje vivemos na sociedade portuguesa. Isso serviria um propósito escapista ou meramente decorativo, em fuga da realidade. E este sábado deu-nos mais um claro sinal de que os portugueses não andam a assobiar para o ar.
A verdade é que queria que hoje o jornal tivesse a generosidade de inscrever nos textos e imagens habituais o seu “outro lado”. Esse lado é o vosso, caros leitores. É o lado de quem o lê e automaticamente imagina coisas a partir da actualidade informativa; de quem especula, extrapola, deseja e teme. É um campo bastante diverso porque é fabricado por milhares de pessoas diferentes, com imaginários, anseios e medos também diversos. É amplo e democrático. Daí a opção por desenhos de crianças incrustados nas fotos (uma espécie de primitivismo da ficção e de materialização simples do desejo que nos conduz a ela), bem como a opção de contarmos com uma larga maioria de textos de convidados que não são ficcionistas, porque sinto que esta operação de criar ficção a partir da realidade não é exclusivo de escritores e afins, mas é a tendência natural de todos nós, desde sempre.
Esta edição do jornal surge num momento em que realidade e ficção aparentam estar completamente interligados. Há uma troika que manda no país como num conto de As Mil e Uma Noites; muitas das histórias que ouvimos e lemos não nos parecem “reais”; o FMI diz uma coisa numa semana e o seu contrário na outra; queremos acreditar num burlão que se diz das Nações Unidas: há uma prática regular de fugas de informação selectivas para tentar condicionar a opinião pública; comissões de “peritos” escrevem relatórios que dizem exactamente aquilo que o Poder quer que venha lá escrito; universidades engendram graus académicos de existência bastante ficcional. Enfim, de uma maneira geral a degradação da situação social está a extremar-se e com isso também se extremam pulsões, matéria com que fabricamos ficção.
Espero que o gesto de hoje, mesmo que modesto, possa ter propriedades antivirais e ajude a demarcar a diferença entre “má” e “boa” ficção. Porque há uma diferença substancial entre a ficcionalização da realidade — a mentira — e a ficção feita a partir da realidade. Contra os vírus, os antivírus.
E também porque gostava de por um dia nos fazer sair a todos, jornalistas e leitores, da nossa zona de conforto feita de rotinas e hábitos. Tenho consciência de que incluir ficção num jornal “sério” é algo tão pouco normal — e aparentemente sacrílego — que nos obriga a voltar a olhar fronteiras, zonas de contacto e dimensão ética desta coisa tão complexa de informar e de imaginar, de saber o que se passou e de especular sobre o que vai (ou não) passar-se. Coisas diferentes umas das outras, mas que se alimentam e vão de par em par.
Vai ficar tudo um bocadinho desarrumado, mas sempre me quis parecer que a desarrumação é o primeiro passo para nos fazer pensar em como voltar a arrumar, de uma mesma maneira ou de outra...
Enfim, o PÚBLICO faz anos! Parabéns ao PÚBLICO.